Filha de pai militar, Marjorie recebeu
uma educação bastante rígida em casa. Educação esta que foi complementada por
freiras docentes na escola de orientação católica que frequentou desde tenra
idade.
Seu comportamento reservado e o uso de
roupas antiquadas chamavam a atenção de seus parcos amigos de infância e
motivavam o falatório da vizinhança. Ela, no entanto, seguia sua vida
normalmente, recusando qualquer conselho ou interferência quanto a mudanças de
hábito.
Aprendeu a conviver com a morte logo
ao nascer. Sobrevivente entre as cinco tentativas de gravidez da mãe, Marjorie
carregava consigo o luto pelos outros quatro irmãos que não vingaram, e
compensava a solidão de filha única registrando em várias agendas os pormenores
dos acontecimentos vividos ao longo dos anos.
A falta de quem deixou este mundo
antes de sua chegada sempre a incomodou, e talvez explicasse um pouco sua
maneira tristonha e reclusa de ser. Era estranho para Marjorie tentar decifrar
seu passado pela fala dos pais, que traziam informações desconexas sobre os
personagens que faltavam nas fotos e nas festas em família.
Muitos parentes, como os avós que
jamais conheceu, não despertavam um sentimento real de saudade, de maneira que
observar fotos antigas não era suficiente para gerar lágrimas. Decerto não
poderia haver vinculação afetiva quando não existiram olhares carinhosos ou
gargalhadas gostosas como lembrança.
Ela prosseguia sua existência
premiada com pais cheios de saúde e longevidade, o que afastava um pouco o medo
que sentia de perdê-los e tornar-se ainda mais sozinha neste mundo.
Foi somente durante a faculdade de
Psicologia que decidiu experimentar o amor... Eduardo, seu eleito, era um rapaz
introvertido, avesso a festas e bebedeiras. Cursava Biblioteconomia e
vislumbrou nos modos educados e discretos de Marjorie a companheira que
almejava para suas tardes de leitura em casa e passeios tranquilos pelo parque
da cidade.
Amante das letras, o rapaz não cabia
em si de satisfação ao perceber o gosto de Marjorie pelos livros, o que era
evidente por sua assiduidade à biblioteca e pelo tempo que dispensava por lá.
Estava completamente apaixonado pela moça de nome significativo e belo.
Investiu em conversas demoradas regadas a café espresso, e precisou de muita
persistência até conquistar em definitivo a confiança daquela garota de poucas
palavras, e logo em seguida, seu afeto para todo o sempre.
Decidiram casar alguns meses após o
início do namoro, pois para eles, não havia mais tempo a perder.
As duas famílias receberam a notícia
do casório com uma mistura de felicidade e alívio. Os pais do noivo jamais
imaginaram que ele tomaria tal decisão tão inesperadamente, pois já estava em
torno dos quarenta anos, e jamais sinalizou qualquer intenção no sentido de
sair de casa e estruturar sua própria família. Os pais de Marjorie, por outro
lado, ansiosos por livrar a filha do caritó, trataram de apressar a cerimônia,
que aconteceu de forma bem modesta.
Marjorie revelou-se uma esposa
exemplar. Após desvendar a natureza do amor carnal no leito de núpcias,
dedicou-se ao marido de maneira intensa e comovente. Atendia com prontidão a
todos os caprichos dele, sem dar margem para a mínima queixa.
Na biblioteca municipal, Eduardo era o
camarada conhecido por estar sempre de sorriso no rosto, exibindo uma
felicidade invejável entre os colegas, considerando seu casamento uma decisão
tão certeira quanto a jogada decisiva do xadrez, seu jogo favorito.
No segundo ano de união, Marjorie
engravidou da pequena Kelly e o casal descobriu que teria uma filha com cardiopatia
congênita. A tristeza voltou a atormentar aquela menina que nunca soube lidar
bem com a morte e o morrer. E entre tantas idas e vindas ao hospital no
enfrentamento da doença, como mãe, ela precisou ressignificar sua ideia de
finitude, para sair do estado de torpor que assumia a cada sinal de cansaço
daquele imperfeito coração.
Contrariando a gravidade de seu quadro
clínico, Kelly alcançou os quatro anos de idade, e foi nesse momento, esgotadas
as possibilidades terapêuticas convencionais, que seu nome foi inserido na
lista de pacientes para transplante.
A partir daí, mãe e filha praticamente
fizeram morada no hospital. O pai exausto, trabalhava o dia todo e visitava a
menina durante a noite, sem descanso. Ambos temiam que Kelly fosse embora a
qualquer momento de distração deles, e seguiam vigilantes. Sem a chegada do novo
coração, a contagem do tempo passou a ser em sentido inverso, pois cada dia
parecia representar menos uma alvorada para a menina.
Foi então que, em um dia chuvoso, durante
o feriado de carnaval, a cidade onde moravam amanheceu estarrecida com a notícia
de um acidente automobilístico envolvendo a família de um influente político
local. Milagrosamente, dada a condição na qual o veículo foi encontrado a beira
da estrada, quase todos os ocupantes saíram ilesos. Pai, mãe e babá sofreram
escoriações leves, a filha adolescente fraturou uma perna, e apenas o caçula de
cinco anos foi socorrido em estado grave.
Por envolver figura pública, o episódio
gerou muita repercussão. As aparições freqüentes do caso nos noticiários
asseguravam a audiência e chegaram a motivar inclusive campanhas de apoio a
criança enferma nas redes sociais. No entanto, passado quase um mês do
acidente, sem maiores novidades, a mídia desinteressou-se e silenciou o caso.
A criança evoluiu mal. E após o segundo
exame neurológico confirmando a morte encefálica, a família, embora enlutada,
disse sim para a doação de órgãos. E o novo coração de Kelly nunca esteve tão
perto dela...
Tudo preparado para o transplante mais
aguardado por todas as mães acompanhantes
da unidade pediátrica, e Marjorie, mesmo envolta pela alegria daquela
torcida toda, estava apavorada. Acompanhou e registrou a chegada do coração até
o centro cirúrgico, e seguiu sua penitência de mãe durante toda a cirurgia,
imóvel diante daquela porta imensa, tentando afastar maus pensamentos repetindo
ave-Marias.
Horas depois recebeu a notícia do
sucesso do procedimento. Caiu de joelhos ao chão e chorou copiosamente toda a
aflição guardada por anos. Durante os dias de recuperação até o retorno
definitivo para casa, aprendeu a ser a nova mãe que a filha exigia e tudo
transcorreu com tranquilidade.
Cumprindo a promessa feita em momento
de desespero, deixou de pagar o dízimo à igreja e revertia a mesma quantia em
dinheiro em doações mensais para as mães internadas no hospital. Kelly
tornou-se a nova carinha do transplante, representando campanhas de doação de
órgãos até os onze anos de idade, quando não resistiu a espera de um novo
procedimento cirúrgico...
Marjorie, marcada para sempre pela história
da filha, tornou-se novamente uma mulher reclusa e infeliz. O marido
protestava, insistia que tentassem ter outro filho, mas ela não aceitava.
Tornou-se péssima companheira, desleixada com o cuidado da casa e desatenciosa
com Eduardo. Ele, inconformado, pediu o divórcio.
Separada, sozinha no mundo após a
morte dos pais, Marjorie criou um blog,
um espaço virtual para troca de experiências com outras famílias de crianças
transplantadas. Tomou gosto pela escrita, reuniu suas principais postagens e
publicou um livro intitulado "Um coração para Kelly".
Eduardo casou-se novamente, teve dois
filhos e mudou de Estado após aprovação em concurso público. Nunca mais teve
notícias de Marjorie, até se deparar com seu nome organizando livros em uma
prateleira de best-sellers da
biblioteca onde trabalhava. Tomou a publicação nas mãos e nunca mais separou-se
dela.
Semanas depois, sozinho no aeroporto,
deixando tudo para trás, terminou a leitura que registrava os anos mais
conturbados e intensos de sua vida a tempo de atender a última chamada para
embarque no avião que retornava a sua terra natal.
" Who can say where the road goes? Where the days flows? Only time...And who can say if your love grows as your heart chose? Only time..."
Enya, Only Time
Você descreveu com clareza a realidade de tantas familias em suas diferentes situações que a vida nos oferece... a doação de órgãos é um momento mistico de luto e alegria... parabéns pelo conto... sua descrição nos faz adentrar nesse universo de dor e esperança
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