quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Um coração para Kelly

        Filha de pai militar, Marjorie recebeu uma educação bastante rígida em casa. Educação esta que foi complementada por freiras docentes na escola de orientação católica que frequentou desde tenra idade.
             Seu comportamento reservado e o uso de roupas antiquadas chamavam a atenção de seus parcos amigos de infância e motivavam o falatório da vizinhança. Ela, no entanto, seguia sua vida normalmente, recusando qualquer conselho ou interferência quanto a mudanças de hábito.
         Aprendeu a conviver com a morte logo ao nascer. Sobrevivente entre as cinco tentativas de gravidez da mãe, Marjorie carregava consigo o luto pelos outros quatro irmãos que não vingaram, e compensava a solidão de filha única registrando em várias agendas os pormenores dos acontecimentos vividos ao longo dos anos.
            A falta de quem deixou este mundo antes de sua chegada sempre a incomodou, e talvez explicasse um pouco sua maneira tristonha e reclusa de ser. Era estranho para Marjorie tentar decifrar seu passado pela fala dos pais, que traziam informações desconexas sobre os personagens que faltavam nas fotos e nas festas em família.
        Muitos parentes, como os avós que jamais conheceu, não despertavam um sentimento real de saudade, de maneira que observar fotos antigas não era suficiente para gerar lágrimas. Decerto não poderia haver vinculação afetiva quando não existiram olhares carinhosos ou gargalhadas gostosas como lembrança.
              Ela prosseguia sua existência premiada com pais cheios de saúde e longevidade, o que afastava um pouco o medo que sentia de perdê-los e tornar-se ainda mais sozinha neste mundo.
              Foi somente durante a faculdade de Psicologia que decidiu experimentar o amor... Eduardo, seu eleito, era um rapaz introvertido, avesso a festas e bebedeiras. Cursava Biblioteconomia e vislumbrou nos modos educados e discretos de Marjorie a companheira que almejava para suas tardes de leitura em casa e passeios tranquilos pelo parque da cidade.
             Amante das letras, o rapaz não cabia em si de satisfação ao perceber o gosto de Marjorie pelos livros, o que era evidente por sua assiduidade à biblioteca e pelo tempo que dispensava por lá. Estava completamente apaixonado pela moça de nome significativo e belo. Investiu em conversas demoradas regadas a café espresso, e precisou de muita persistência até conquistar em definitivo a confiança daquela garota de poucas palavras, e logo em seguida, seu afeto para todo o sempre.
            Decidiram casar alguns meses após o início do namoro, pois para eles, não havia mais tempo a perder.
           As duas famílias receberam a notícia do casório com uma mistura de felicidade e alívio. Os pais do noivo jamais imaginaram que ele tomaria tal decisão tão inesperadamente, pois já estava em torno dos quarenta anos, e jamais sinalizou qualquer intenção no sentido de sair de casa e estruturar sua própria família. Os pais de Marjorie, por outro lado, ansiosos por livrar a filha do caritó, trataram de apressar a cerimônia, que aconteceu de forma bem modesta.
         Marjorie revelou-se uma esposa exemplar. Após desvendar a natureza do amor carnal no leito de núpcias, dedicou-se ao marido de maneira intensa e comovente. Atendia com prontidão a todos os caprichos dele, sem dar margem para a mínima queixa.
           Na biblioteca municipal, Eduardo era o camarada conhecido por estar sempre de sorriso no rosto, exibindo uma felicidade invejável entre os colegas, considerando seu casamento uma decisão tão certeira quanto a jogada decisiva do xadrez, seu jogo favorito.
           No segundo ano de união, Marjorie engravidou da pequena Kelly e o casal descobriu que teria uma filha com cardiopatia congênita. A tristeza voltou a atormentar aquela menina que nunca soube lidar bem com a morte e o morrer. E entre tantas idas e vindas ao hospital no enfrentamento da doença, como mãe, ela precisou ressignificar sua ideia de finitude, para sair do estado de torpor que assumia a cada sinal de cansaço daquele imperfeito coração.
       Contrariando a gravidade de seu quadro clínico, Kelly alcançou os quatro anos de idade, e foi nesse momento, esgotadas as possibilidades terapêuticas convencionais, que seu nome foi inserido na lista de pacientes para transplante.
       A partir daí, mãe e filha praticamente fizeram morada no hospital. O pai exausto, trabalhava o dia todo e visitava a menina durante a noite, sem descanso. Ambos temiam que Kelly fosse embora a qualquer momento de distração deles, e seguiam vigilantes. Sem a chegada do novo coração, a contagem do tempo passou a ser em sentido inverso, pois cada dia parecia representar menos uma alvorada para a menina.
      Foi então que, em um dia chuvoso, durante o feriado de carnaval, a cidade onde moravam amanheceu estarrecida com a notícia de um acidente automobilístico envolvendo a família de um influente político local. Milagrosamente, dada a condição na qual o veículo foi encontrado a beira da estrada, quase todos os ocupantes saíram ilesos. Pai, mãe e babá sofreram escoriações leves, a filha adolescente fraturou uma perna, e apenas o caçula de cinco anos foi socorrido em estado grave.
     Por envolver figura pública, o episódio gerou muita repercussão. As aparições freqüentes do caso nos noticiários asseguravam a audiência e chegaram a motivar inclusive campanhas de apoio a criança enferma nas redes sociais. No entanto, passado quase um mês do acidente, sem maiores novidades, a mídia desinteressou-se e silenciou o caso.
       A criança evoluiu mal. E após o segundo exame neurológico confirmando a morte encefálica, a família, embora enlutada, disse sim para a doação de órgãos. E o novo coração de Kelly nunca esteve tão perto dela...
      Tudo preparado para o transplante mais aguardado por todas as mães acompanhantes  da unidade pediátrica, e Marjorie, mesmo envolta pela alegria daquela torcida toda, estava apavorada. Acompanhou e registrou a chegada do coração até o centro cirúrgico, e seguiu sua penitência de mãe durante toda a cirurgia, imóvel diante daquela porta imensa, tentando afastar maus pensamentos repetindo ave-Marias.
         Horas depois recebeu a notícia do sucesso do procedimento. Caiu de joelhos ao chão e chorou copiosamente toda a aflição guardada por anos. Durante os dias de recuperação até o retorno definitivo para casa, aprendeu a ser a nova mãe que a filha exigia e tudo transcorreu com tranquilidade.
        Cumprindo a promessa feita em momento de desespero, deixou de pagar o dízimo à igreja e revertia a mesma quantia em dinheiro em doações mensais para as mães internadas no hospital. Kelly tornou-se a nova carinha do transplante, representando campanhas de doação de órgãos até os onze anos de idade, quando não resistiu a espera de um novo procedimento cirúrgico...
       Marjorie, marcada para sempre pela história da filha, tornou-se novamente uma mulher reclusa e infeliz. O marido protestava, insistia que tentassem ter outro filho, mas ela não aceitava. Tornou-se péssima companheira, desleixada com o cuidado da casa e desatenciosa com Eduardo. Ele, inconformado, pediu o divórcio.
       Separada, sozinha no mundo após a morte dos pais, Marjorie criou um blog, um espaço virtual para troca de experiências com outras famílias de crianças transplantadas. Tomou gosto pela escrita, reuniu suas principais postagens e publicou um livro intitulado "Um coração para Kelly".
         Eduardo casou-se novamente, teve dois filhos e mudou de Estado após aprovação em concurso público. Nunca mais teve notícias de Marjorie, até se deparar com seu nome organizando livros em uma prateleira de best-sellers da biblioteca onde trabalhava. Tomou a publicação nas mãos e nunca mais separou-se dela.
         Semanas depois, sozinho no aeroporto, deixando tudo para trás, terminou a leitura que registrava os anos mais conturbados e intensos de sua vida a tempo de atender a última chamada para embarque no avião que retornava a sua terra natal.

      " Who can say where the road goes? Where the days flows? Only time...And who can say if your love grows as your heart chose? Only time..." 
Enya, Only Time

Um comentário:

  1. Você descreveu com clareza a realidade de tantas familias em suas diferentes situações que a vida nos oferece... a doação de órgãos é um momento mistico de luto e alegria... parabéns pelo conto... sua descrição nos faz adentrar nesse universo de dor e esperança

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