segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Desabafo

           A infância silenciosa e solitária de filha única infelizmente não lhe rendeu a escrita poética de Cecília. Tampouco permitiu o extremo oposto, a atitude aguerrida em favor da causa feminista como tão bem faz Martha Medeiros.
          Segue ali, vivendo seus papéis de mulher, filha, esposa e mãe, passeando entre a lucidez e fortaleza de Clarice e a doçura que carregam as lembranças de outros tempos, como páginas preenchidas por Cora.
           O som do violão é refrigério da alma em dias tensos e ajuda na reaproximação às coisas simples, embora jamais consiga viajar para dentro de si tão completamente como Quintana.
      Romântica, partidária do amor, a exemplo de Vinícius e Drummond, não consegue concebê-lo sem uma parcela de pesar e sofrimento.
           Em tempos de tantos delírios e ilusões em massa, encontra no humor ácido e na crítica social de Rodrigues a identificação com alguém que sente o desajuste de viver em uma época de aparências e valores frágeis.
        Segue esperançosa, disposta a lutar por melhores dias, pois, ao contrário do que pensam, são os contidos, e não os ousados, que pagam com a vida...A vida deixada para trás...

“Baby, baby, não adianta chamar, quando alguém está perdido procurando se encontrar. Baby, baby, não vale a pena esperar, oh não, tire isso da cabeça, ponha o resto no lugar...” Rita Lee.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Árvores do Coração

    O Natal estava próximo. A enfermeira entrava no hospital para mais um dia de trabalho. Seguindo vagarosamente de carro até a sua unidade, foi observando pela janela o bosque de eucaliptos centenário localizado na entrada da instituição e todas as árvores que ladeavam as alamedas dos setores de internação. Observando toda aquela beleza natural, teve uma ideia...
    Procurou os enfeites natalinos guardados desde o Natal passado para enfeitar sua sala, saiu, escolheu uma árvore de verdade, e a enfeitou. Em pouco tempo, a iniciativa chamou a atenção de funcionários, pacientes e familiares. A atitude dela disparou um movimento dentro da instituição. Todos passaram a apadrinhar e enfeitar uma árvore.
  A Emergência decidiu pedir aos colaboradores e acompanhantes que trouxessem de casa enfeites para sua árvore. Cada bola, estrela e sino recebido era fixado em um cartão com uma dedicatória ao hospital. Naqueles pedacinhos de papel, cada um depositava sua mensagem de carinho, gratidão e amor.
  Psicologia e Terapia Ocupacional trouxeram materiais e solicitaram aos pacientes que customizassem enfeites natalinos para criar uma árvore exclusiva. Para concluir o trabalho, com as tintas que sobraram, eles carimbaram no tronco da árvore as palmas de suas mãos.
          Os rapazes da Manutenção, Segurança e TI não quiseram deixar de participar,   e honrando a praticidade masculina, optaram por uma árvore com bolas gigantes de plástico coloridas e muito festão dourado. E ainda assim, conseguiram um lindo resultado.
     A Pediatria não teve dúvidas… Pendurou várias cartinhas para o Papai Noel escritas pelas crianças internas. E colocou ao pé da árvore um baú para quem quisesse adotar um pedido e colocar o presente desejado.
       No entanto, foram as equipes do Centro Cirúrgico e do Transplante que criaram a árvore mais especial. Cada paciente atendido nos ambulatórios em consulta de acompanhamento recebia um coração de cartolina. Eles eram convidados a colarem de um lado do enfeite uma foto antes do transplante, e no verso, outra após receber o novo coração. E a árvore de lá carregou todos esses registros de superação e vida.
       Com a proximidade do dia 25, as equipes começavam a marcar suas confraternizações nos grupos. A enfermeira sugeriu que esse ano não houvesse amigo secreto e que a cota do presente fosse revertida em doações para a Associação dos Transplantados que estava em dificuldade financeira. A ideia também foi acolhida com sucesso e ela conseguiu uma boa contribuição para ajudar a custear a casa de apoio.
      O setor de Oncologia, recém-inaugurado, também resolveu reverter as cotas de presente em doação. Com o dinheiro arrecadado, ofereceu um café da manhã de Natal e uma oficina de turbantes para mulheres em quimioterapia.
            E, foi assim, com árvores de verdade, que todos viveram um verdadeiro Natal...


"Há um vilarejo ali, onde areja um vento bom, na varanda, quem descansa, vê o horizonte deitar no chão. Pra acalmar o coração, lá o mundo tem razão..." Marisa Monte. 

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Do pingado ao macchiato


         Foi a enfermeira escolhida para participar de uma oficina de capacitação sobre tabagismo como preparação para instituir um grupo de Cessação do Tabagismo na unidade de saúde onde trabalhava. Estava contrariada a princípio, pois não gostaria de abraçar essa ideia, mas percorrendo as estações de aprendizagem, passou a gostar do assunto...
   As facilitadoras orientaram que, na condução dos grupos nas unidades, fosse solicitado aos participantes que escolhessem um dia para parar de fumar, e que eles mastigassem cascas de limão, cravo e gengibre quando sentissem vontade de pegar um cigarro. E a orientação principal aos enfermeiros, que seriam coordenadores dos grupos, era: “ tentar quebrar o elo que liga ao hábito de fumar”!
           Neste ponto, uma instrutora afirmou que o hábito de tomar café e fumar era bastante presente entre os tabagistas, e sugeriu incentivar a troca do café por leite ou chá, até que os participantes dos grupos deixassem de tomar café em definitivo, e, com isso, também abandonassem o cigarro.
Incomodada com essas afirmações, pensando alto, a enfermeira interrompeu a facilitadora, alegando que largar o café e o cigarro poderia representar para esses grupos de fumantes duas perdas ao invés de uma, além de considerar desleal propor algo que ela mesma não conseguiria fazer, pois também amava tomar café. Sugeriu, então, ressignificar a experiência dos fumantes com o café, dissociando a bebida do hábito de fumar.
        A discordância gerou mal-estar, e a enfermeira foi interrompida com a seguinte sentença: “- Você pode seguir o manual ou fazer diferente. Fique à vontade!”. Assim, optou por permanecer calada até o final da oficina.
   Chegou em casa com a cabeça fervilhando de ideias para o grupo, e dentre elas, decidiu que levaria para cada encontro, uma garrafa com uma receita de café de sabor diferente, para que os tabagistas preparassem em casa, experimentassem, e relatassem a experiência no encontro posterior.
         Para o primeiro encontro, levou uma receita de café com limão siciliano, adaptação grosseira e simples do café argeliano mazagran. E como a aceitação foi boa, não parou mais de inventar para os encontros seguintes…
        Em pouco tempo, as receitinhas de café “viralizaram” na comunidade. No grupo, a enfermeira recebia sugestões de novos ingredientes, e alguns pacientes levavam também receitas criadas por eles. Movidos pela curiosidade para experimentar um novo tipo de café, os participantes permaneciam assíduos ao grupo, e alguns pacientes realmente tiveram êxito em deixar o cigarro. Outros, infelizmente, não conseguiram vencer o vício. Mas isso já era esperado…
  Encerrando o ciclo dos encontros do primeiro grupo, ela disse aos participantes: “- Nunca esqueçam que as sementes de todas as possibilidades estão dentro de nós. Assim, para tudo na vida, vocês podem seguir o manual ou fazer diferente. Fiquem à vontade!” 




É saber se sentir infinito, num universo tão vasto e bonito, é saber sonhar, então, fazer valer a pena cada verso daquele poema sobre acreditar… " Trem Bala, Ana Vilela.

sábado, 9 de junho de 2018

Efeito Sanfona


        Passou na padaria no retorno do trabalho disposta apenas a tomar uma sopa e encerrar o dia. Encontrou o ambiente todo decorado com a temática junina e a oferta de comidas típicas em grandes panelas de barro expostas para self-service. Foi o bastante para relembrar os festejos de São João de sua infância...
        Lembrou-se dos ensaios para quadrilha no pátio da escola, do constrangimento em dançar em par com um coleguinha pouco conhecido, do barulho das bandeirinhas de papel sacudidas pelo vento, e, é claro, das músicas de Luiz que tocavam repetidas vezes e marcavam todos os passos.
        Nesse período, a mãe seguia o exemplo de várias mulheres do bairro e fazia deliciosas cocadas para venda nas barraquinhas da Igreja, como forma de arrecadar fundos para uma reforma ou campanha católica. E de todas as festas juninas da cidade, talvez pela habilidade para cozinhar e boa ação daquelas senhoras, nenhuma tinha pratos típicos tão saborosos quanto aos das quermesses.
          Acabou rindo sozinha na mesa da padaria, lembrando o seu esforço nas brincadeiras de pescaria, jogo de argolas, boca de palhaço, derruba latas, e outras mais, só para ganhar o melhor dos presentes: uma caixa de estalinhos! E seguir feliz fazendo barulho e assustando pessoas distraídas nas filas das barraquinhas de comidas típicas...
      Começou a tocar uma música ambiente e ela recordou de uma festa junina na companhia do pai. Acostumada a festas animadas com caixas de som, ficou fascinada ao ver e ouvir um trio com sanfona, zabumba e triângulo. O pai começou a contar histórias das festas no interior, de um tal “correio elegante”, onde os “cabras” mais atrevidos enviavam bilhetes para moças comprometidas, e em como ele ajudava nisso, sendo culpado pela união de muito casal que estava trocado, vivendo com a pessoa errada e nem percebia.
           Como sua mãe rejeitou a dança nesse dia, o pai saiu dançando com ela, que ainda mal alcançava seu ombro. Lembrou que sentia as trancinhas batendo no rosto cada vez que rodopiava, e que o calor do vestidão rodado de chita não incomodou em nada aquela alegria tão grande.  
        Pararam somente para acompanhar o bingo. Cada um com seu palitinho de dente, furando a cartela e torcendo pra ganhar o cofrinho cheio de dinheiro que rodou a festa inteira. Não ganharam, mas o pai disse que ela era campeã porque marcou mais números que ele, e ela saiu feliz e vitoriosa por isso, na sua inocência infantil.     
        Deixou a padaria e no caminho para casa ainda surgiram muitas outras lembranças... Pela primeira vez considerou bonito o pai despedir-se deste mundo em um Dia de Santo Antônio. Pareceu bastante justo que um amante do toque da sanfona e da simplicidade da vida sertaneja partisse em mês junino...

"A fogueira tá queimando/ em homenagem a São João/ O forró já começou/ Vamos gente, rapa-pé nesse salão..." São João na Roça - Luiz Gonzaga











sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Lembranças de Maria

         Acostumada a passar uma parte das férias na casa da avó, Maria ganhou o gosto pela escuta de histórias e músicas antigas no contato  com os idosos da vizinhança, moradores ancestrais daquela pequena rua, de sentido único e pouco movimento.
         Com o sonho de ter uma pianista entre as netas, D. Francisca matriculou Maria em aulas de piano. Assim, logo cedo, a menina caminhava até o final do quarteirão para a casa de Dona Eridan, uma professora experiente, de formação musical tradicional em conservatório, que tentava inutilmente convencer Maria a tocar no compasso correto. Ela, no entanto, sentia a alegria da música tão forte em seu interior, que não encontrava correspondência entre a partitura diante de seus olhos e um som tão arrastado. E seguia tocando de maneira acelerada, aborrecendo aquela senhora, que sob hipótese alguma aceitava a releitura de uma criança para um clássico de Mário Mascarenhas...
         Terminada a aula, Maria atravessava a rua e entrava na mercearia de Seu Osmar. De mãos espalmadas e rostinho grudado no vidro do longo balcão de madeira, esforçava-se para ver todos os artigos expostos na prateleira. Com sua curiosidade infantil, vasculhava todo o estabelecimento, deixando seu rastro. Mergulhava as conchas dosadoras nos grandes sacos de mantimentos, colocava objetos no prato da balança para ver o movimento do grande pêndulo, e questionava Seu Osmar sobre cada item desconhecido para ela.
        O velhinho, muito paciente, criava histórias para explicar o funcionamento de uma lamparina, de um ferro de passar a brasa, de um filtro de barro, etc. E apesar de sempre deixar algum prejuízo em sua passagem, Maria garantia boas gargalhadas a Seu Osmar, recebendo como recompensa um punhado de balas sortidas retiradas do grande dispensador giratório de vidro.
         Muito arteira, a menina cruzava o corredor que ligava a mercearia ao armarinho de dona Isaura, e lá, cuidava em desorganizar as linhas e apetrechos de costura da esposa de seu Osmar. Gostava de fingir que atendia às clientes, medindo pedaços de tecidos na régua metro de madeira, ou embrulhando fitas e botões nos saquinhos de papel Kraft usados como embalagem. Dona Isaura, tão benevolente quanto o marido, admitia a brincadeira, observando tudo enquanto laçava punhos de rede no dedão do pé. E apesar da desordem toda, Maria nunca saía de lá sem retalhos de panos e enfeites para roupas de bonecas.
        Do outro lado da rua, escorados no portão, como de costume, estavam Seu Gregório e Dona Neusa. E Maria corria para mais uma visitinha...
       Em sua oficina no quintal da casa, o ancião, descendente de alemães, consertava toda sorte de aparelhos eletrônicos. E Maria bisbilhotava tudo! Caixas de tamanhos variados, com peças de todos os tipos, rádios, vitrolas e televisões de tubo. Equipamentos sofisticados que os donos nunca foram resgatar, funcionando perfeitamente, guardados como item de colecionador por Seu Gregório. Muito culto, poliglota, ele decidiu ensinar inglês para Maria, utilizando material impresso e discos de vinil de um curso antigo de línguas para crianças.
        No meio da conversa com ares de aula, Dona Neusa chegava com uma bandeja cheia de gostosuras. Fazia doces e salgados para vender, mas nunca prosperou com o negócio, pois ao menor elogio aos seus quitutes, fazia uma porção generosa deles gratuitamente para retribuir a delicadeza. Seu Gregório, por sua vez, compreendia o passatempo da esposa e não se importava com os gastos pra manter tal alegria. Para Maria, era outra aventura acompanhar Dona Neusa na cozinha e folhear todos aqueles livros de receita com ilustrações tão lindas...
        Quase na hora do almoço, a menina terminava seu ziguezague pela rua na casa da avó novamente, e desatava a relatar tudo o que tinha visto e aprendido com a vizinhança.   

        Foi crescendo e sentindo a partida de cada um desses personagens que povoaram e deixaram boas lembranças em sua infância. Disse não para as aulas de piano, e muitas outras vezes durante a vida para todos aqueles que não permitiam que ela experimentasse novas versões...

"Há um passado no meu presente, um sol bem quente lá no meu quintal,toda vez que a bruxa me assombra, o menino me dá a mão..."  Bola de meia, bola de gude -14 Bis