Acostumada a passar uma parte das férias na
casa da avó, Maria ganhou o gosto pela escuta de histórias e músicas antigas no
contato com os idosos da vizinhança,
moradores ancestrais daquela pequena rua, de sentido único e pouco movimento.
Com o sonho de ter uma pianista entre as netas, D. Francisca matriculou Maria
em aulas de piano. Assim, logo cedo, a menina caminhava até o final do
quarteirão para a casa de Dona Eridan, uma professora experiente, de formação
musical tradicional em conservatório, que tentava inutilmente convencer Maria a
tocar no compasso correto. Ela, no entanto, sentia a alegria da música tão
forte em seu interior, que não encontrava correspondência entre a partitura diante
de seus olhos e um som tão arrastado. E seguia tocando de maneira acelerada, aborrecendo
aquela senhora, que sob hipótese alguma aceitava a releitura de uma criança
para um clássico de Mário Mascarenhas...
Terminada a aula, Maria atravessava a rua e entrava na mercearia de Seu
Osmar. De mãos espalmadas e rostinho grudado no vidro do longo balcão de
madeira, esforçava-se para ver todos os artigos expostos na prateleira. Com sua
curiosidade infantil, vasculhava todo o estabelecimento, deixando seu rastro.
Mergulhava as conchas dosadoras nos grandes sacos de mantimentos, colocava
objetos no prato da balança para ver o movimento do grande pêndulo, e
questionava Seu Osmar sobre cada item desconhecido para ela.
O velhinho, muito paciente, criava histórias para explicar o
funcionamento de uma lamparina, de um ferro de passar a brasa, de um filtro de
barro, etc. E apesar de sempre deixar algum prejuízo em sua passagem, Maria garantia
boas gargalhadas a Seu Osmar, recebendo como recompensa um punhado de balas sortidas
retiradas do grande dispensador giratório de vidro.
Muito arteira, a menina cruzava o corredor que ligava a mercearia ao
armarinho de dona Isaura, e lá, cuidava em desorganizar as linhas e apetrechos
de costura da esposa de seu Osmar. Gostava de fingir que atendia às clientes,
medindo pedaços de tecidos na régua metro de madeira, ou embrulhando fitas e
botões nos saquinhos de papel Kraft usados
como embalagem. Dona Isaura, tão benevolente quanto o marido, admitia a
brincadeira, observando tudo enquanto laçava punhos de rede no dedão do pé. E
apesar da desordem toda, Maria nunca saía de lá sem retalhos de panos e enfeites
para roupas de bonecas.
Do
outro lado da rua, escorados no portão, como de costume, estavam Seu Gregório e
Dona Neusa. E Maria corria para mais uma visitinha...
Em
sua oficina no quintal da casa, o ancião, descendente de alemães, consertava
toda sorte de aparelhos eletrônicos. E Maria bisbilhotava tudo! Caixas de
tamanhos variados, com peças de todos os tipos, rádios, vitrolas e televisões
de tubo. Equipamentos sofisticados que os donos nunca foram resgatar, funcionando
perfeitamente, guardados como item de colecionador por Seu Gregório. Muito
culto, poliglota, ele decidiu ensinar inglês para Maria, utilizando material
impresso e discos de vinil de um curso antigo de línguas para crianças.
No meio da conversa com ares de aula, Dona Neusa chegava com uma bandeja
cheia de gostosuras. Fazia doces e salgados para vender, mas nunca prosperou
com o negócio, pois ao menor elogio aos seus quitutes, fazia uma porção
generosa deles gratuitamente para retribuir a delicadeza. Seu Gregório, por sua
vez, compreendia o passatempo da esposa e não se importava com os gastos pra
manter tal alegria. Para Maria, era outra aventura acompanhar Dona Neusa na
cozinha e folhear todos aqueles livros de receita com ilustrações tão lindas...
Quase na hora do almoço, a menina terminava seu ziguezague pela rua na
casa da avó novamente, e desatava a relatar tudo o que tinha visto e aprendido com
a vizinhança.
Foi crescendo e sentindo a partida de cada um desses personagens que
povoaram e deixaram boas lembranças em sua infância. Disse não para as aulas de
piano, e muitas outras vezes durante a vida para todos aqueles que não permitiam
que ela experimentasse novas versões...
"Há um passado no meu presente, um sol bem quente lá no meu quintal,toda vez que a bruxa me assombra, o menino me dá a mão..." Bola de meia, bola de gude -14 Bis