sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Lembranças de Maria

         Acostumada a passar uma parte das férias na casa da avó, Maria ganhou o gosto pela escuta de histórias e músicas antigas no contato  com os idosos da vizinhança, moradores ancestrais daquela pequena rua, de sentido único e pouco movimento.
         Com o sonho de ter uma pianista entre as netas, D. Francisca matriculou Maria em aulas de piano. Assim, logo cedo, a menina caminhava até o final do quarteirão para a casa de Dona Eridan, uma professora experiente, de formação musical tradicional em conservatório, que tentava inutilmente convencer Maria a tocar no compasso correto. Ela, no entanto, sentia a alegria da música tão forte em seu interior, que não encontrava correspondência entre a partitura diante de seus olhos e um som tão arrastado. E seguia tocando de maneira acelerada, aborrecendo aquela senhora, que sob hipótese alguma aceitava a releitura de uma criança para um clássico de Mário Mascarenhas...
         Terminada a aula, Maria atravessava a rua e entrava na mercearia de Seu Osmar. De mãos espalmadas e rostinho grudado no vidro do longo balcão de madeira, esforçava-se para ver todos os artigos expostos na prateleira. Com sua curiosidade infantil, vasculhava todo o estabelecimento, deixando seu rastro. Mergulhava as conchas dosadoras nos grandes sacos de mantimentos, colocava objetos no prato da balança para ver o movimento do grande pêndulo, e questionava Seu Osmar sobre cada item desconhecido para ela.
        O velhinho, muito paciente, criava histórias para explicar o funcionamento de uma lamparina, de um ferro de passar a brasa, de um filtro de barro, etc. E apesar de sempre deixar algum prejuízo em sua passagem, Maria garantia boas gargalhadas a Seu Osmar, recebendo como recompensa um punhado de balas sortidas retiradas do grande dispensador giratório de vidro.
         Muito arteira, a menina cruzava o corredor que ligava a mercearia ao armarinho de dona Isaura, e lá, cuidava em desorganizar as linhas e apetrechos de costura da esposa de seu Osmar. Gostava de fingir que atendia às clientes, medindo pedaços de tecidos na régua metro de madeira, ou embrulhando fitas e botões nos saquinhos de papel Kraft usados como embalagem. Dona Isaura, tão benevolente quanto o marido, admitia a brincadeira, observando tudo enquanto laçava punhos de rede no dedão do pé. E apesar da desordem toda, Maria nunca saía de lá sem retalhos de panos e enfeites para roupas de bonecas.
        Do outro lado da rua, escorados no portão, como de costume, estavam Seu Gregório e Dona Neusa. E Maria corria para mais uma visitinha...
       Em sua oficina no quintal da casa, o ancião, descendente de alemães, consertava toda sorte de aparelhos eletrônicos. E Maria bisbilhotava tudo! Caixas de tamanhos variados, com peças de todos os tipos, rádios, vitrolas e televisões de tubo. Equipamentos sofisticados que os donos nunca foram resgatar, funcionando perfeitamente, guardados como item de colecionador por Seu Gregório. Muito culto, poliglota, ele decidiu ensinar inglês para Maria, utilizando material impresso e discos de vinil de um curso antigo de línguas para crianças.
        No meio da conversa com ares de aula, Dona Neusa chegava com uma bandeja cheia de gostosuras. Fazia doces e salgados para vender, mas nunca prosperou com o negócio, pois ao menor elogio aos seus quitutes, fazia uma porção generosa deles gratuitamente para retribuir a delicadeza. Seu Gregório, por sua vez, compreendia o passatempo da esposa e não se importava com os gastos pra manter tal alegria. Para Maria, era outra aventura acompanhar Dona Neusa na cozinha e folhear todos aqueles livros de receita com ilustrações tão lindas...
        Quase na hora do almoço, a menina terminava seu ziguezague pela rua na casa da avó novamente, e desatava a relatar tudo o que tinha visto e aprendido com a vizinhança.   

        Foi crescendo e sentindo a partida de cada um desses personagens que povoaram e deixaram boas lembranças em sua infância. Disse não para as aulas de piano, e muitas outras vezes durante a vida para todos aqueles que não permitiam que ela experimentasse novas versões...

"Há um passado no meu presente, um sol bem quente lá no meu quintal,toda vez que a bruxa me assombra, o menino me dá a mão..."  Bola de meia, bola de gude -14 Bis





Um comentário: