Casa 1
A visita
iniciou tranquilamente. A enfermeira ouvia com atenção o relato de
dona Lourdes, constatando que todas as tomadas de medicações
diárias estavam equivocadas. O médico atualizou as receitas e
desenhou as capsulas a serem administradas pela manhã, após o
almoço e à noite. A enfermeira organizou tudo em uma caixa, com
divisórias de papelão, colando na tampa o papel com a orientação
médica para consulta em caso de dúvidas.
O médico
seguiu examinando a paciente e verificando seus exames mais recentes.
Enquanto isso, a enfermeira escutou um choro vindo da sala. Saiu do
quarto para averiguar e encontrou Marciana, a filha de Dona Lourdes.
Ela engomava uma toalha de banho. Era a última peça do kit de
roupas solicitado pelo presídio onde seu filho de 21 anos estava há
dois meses. Preso por furto, aguardava audiência para o mês
seguinte, e Marciana, em seu sofrimento de mãe, diariamente recorria
ao uso compulsivo de medicações para conseguir dormir.
A
enfermeira olhava incrédula para o retrato do menino na parede. Há
11 anos trabalhando no mesmo posto de saúde, viu aquela criança
“adolescer”. Estranhou a mudança de imagem, o cabelo com luzes e
as tatuagens que em pouco tempo cobriram seu corpo. Lembrou da
consulta em que ele relevou o uso de drogas ilícitas, e pensou no
que poderia ter feito além do atendimento de rotina.
O médico
finalizou a visita, e foram para o carro. Teresinha acenou para a
enfermeira, debruçada na janela de casa, do outro lado da rua.
Trabalhava em um shopping, em serviços gerais, fazia uso crônico de
psicotrópicos, e cuidava sozinha da filha de oito anos, desde que os
pais foram mortos por desafetos do irmão, que sumiu pelo mundo para
não ter o mesmo fim.
A
lembrança dessa história causou certa aflição a enfermeira, que
olhando pelo retrovisor, desejou, do fundo do coração, que a
história tivesse outro desfecho para Marciana...
Casa 2
Quando
chegamos, dona Iêda estava sentada em sua cadeira de rodas, na área
de frente da casa, descascando uma maça. A doença de Alzheimer
apagou quase por completo a imagem da professora inteligente e
trabalhadora, e colocou em seu rosto um olhar distante e um sorriso
infantil. Tentando algum contato, o médico disse para dona Iêda que
a ausculta cardíaca revelou um coração apaixonado. Para surpresa
de toda a equipe que acompanhava a visita domiciliar, ela chorou e
disse: “- É pelo Azevedo. Não esqueci dele nem um dia...”
Comovida, a
enfermeira ajoelhou-se ao lado da cadeira, segurou a mão trêmula de
dona Iêda e pediu que ela contasse mais sobre o que sentia. Começou
a ouvir sobre um romance que ela viveu aos dezesseis anos. Contou que
se apaixonou perdidamente e cometeu a insensatez de exibir para ele o
seu tornozelo! Um gesto que, segundo ela, naquela época, unia para
sempre um casal. E eles logo trataram de encontrar uma maneira de
efetivar essa união. Azevedo planejava levá-la para passar a noite
na casa de uma prima, e no outro dia, chegaria com dona Iêda na casa
de seus pais, tornando o casamento inevitável. Porém, chorando
bastante, ela contou que o plano fracassou, e que se casou com seu
marido somente para “evitar o falatório”.
A
enfermeira tentou acalmá-la, pois o médico estava desconcertado com
o que tinha rendido sua brincadeira, e somente observava calado o
desenrolar da conversa. A filha de dona Iêda, que também assistia
tudo, demonstrou grande desconforto, sentida pelo pai, já falecido.
E assim, o mais prudente a fazer foi encerrar a visita por ali...
O silêncio
de todos no carro não precisava de tradução. A memória afetiva
daquela mulher estava ali, presente, mostrando que o amor é parte do
que somos, e não se apaga...
Casa 3
Já estávamos
indo embora quando dona Julieta veio atender a campainha. Aos setenta
anos, sofria com dores articulares que prejudicavam sua mobilidade.
Ir ao posto de saúde tornou-se tarefa laboriosa, o que justificava a
visita domiciliar. Na sala, inúmeras sacolas com retalhos de tecido
e caixas com artigos de armarinho. A antiga máquina Singer e o
ofício de costureira foram herdados da mãe, quase centenária,
falecida há alguns meses. Depressiva pela perda, contou que passou a
costurar roupinhas para a coleção de bonecas Susy da mãe, e nos
chamou para ir até um quarto localizado nos fundos da casa.
Lá,
encontramos prateleiras repletas de bonecas, com lindos vestidos de
festa. A coleção de Dona Julieta contabilizava 179 bonecas. Todas
organizadas, enfileiradas, embaladas, como se tivessem acabado de ser
fabricadas. Ela foi mostrando os detalhes de cada modelo, falando do
trabalho minucioso para cortar moldes tão pequenininhos, costurar
rendas e bordar continhas. Segundo ela, o quarto de bonecas foi
avaliado em mais de 12 mil reais por um especialista, que insistiu
com dona Julieta para que ela participasse de exposições e eventos
com suas peças, mas ela nunca aceitou.
Quase
instantaneamente, a enfermeira pensou em suas meninas. Queria que
elas pudessem apreciar aquilo tudo, mas logo em seguida, foi tomada
por outros pensamentos...Quanto mais dona Julieta falava, mais ela
enxergava o sofrimento escondido naquela beleza toda. Imaginou aquela
senhora trabalhando insistentemente, o dia todo criando novas
roupinhas, trocando as bonecas, limpando uma a uma, tudo para tentar
amenizar a tristeza que sentia com a falta da mãe, mas diante da
admiração de todos, guardou suas impressões.
Pelo adiantado
da hora, e pelo cansaço físico e emocional daquela tarde, era
preciso retornar. E as visitas foram encerradas, deixando ainda mais
claro que a vida real muitas vezes desmente o que se aprende nos
livros...
"O tom da conversa que ouço me criva, de setas e facas, e favos de mel. É a peleja do diabo com o dono do céu." A peleja do diabo com o dono do ceú, Zé Ramalho.