terça-feira, 26 de novembro de 2019

Visita Domiciliar


Casa 1

      A visita iniciou tranquilamente. A enfermeira ouvia com atenção o relato de dona Lourdes, constatando que todas as tomadas de medicações diárias estavam equivocadas. O médico atualizou as receitas e desenhou as capsulas a serem administradas pela manhã, após o almoço e à noite. A enfermeira organizou tudo em uma caixa, com divisórias de papelão, colando na tampa o papel com a orientação médica para consulta em caso de dúvidas.
        O médico seguiu examinando a paciente e verificando seus exames mais recentes. Enquanto isso, a enfermeira escutou um choro vindo da sala. Saiu do quarto para averiguar e encontrou Marciana, a filha de Dona Lourdes. Ela engomava uma toalha de banho. Era a última peça do kit de roupas solicitado pelo presídio onde seu filho de 21 anos estava há dois meses. Preso por furto, aguardava audiência para o mês seguinte, e Marciana, em seu sofrimento de mãe, diariamente recorria ao uso compulsivo de medicações para conseguir dormir.
        A enfermeira olhava incrédula para o retrato do menino na parede. Há 11 anos trabalhando no mesmo posto de saúde, viu aquela criança “adolescer”. Estranhou a mudança de imagem, o cabelo com luzes e as tatuagens que em pouco tempo cobriram seu corpo. Lembrou da consulta em que ele relevou o uso de drogas ilícitas, e pensou no que poderia ter feito além do atendimento de rotina.
        O médico finalizou a visita, e foram para o carro. Teresinha acenou para a enfermeira, debruçada na janela de casa, do outro lado da rua. Trabalhava em um shopping, em serviços gerais, fazia uso crônico de psicotrópicos, e cuidava sozinha da filha de oito anos, desde que os pais foram mortos por desafetos do irmão, que sumiu pelo mundo para não ter o mesmo fim.
     A lembrança dessa história causou certa aflição a enfermeira, que olhando pelo retrovisor, desejou, do fundo do coração, que a história tivesse outro desfecho para Marciana...

Casa 2

       Quando chegamos, dona Iêda estava sentada em sua cadeira de rodas, na área de frente da casa, descascando uma maça. A doença de Alzheimer apagou quase por completo a imagem da professora inteligente e trabalhadora, e colocou em seu rosto um olhar distante e um sorriso infantil. Tentando algum contato, o médico disse para dona Iêda que a ausculta cardíaca revelou um coração apaixonado. Para surpresa de toda a equipe que acompanhava a visita domiciliar, ela chorou e disse: “- É pelo Azevedo. Não esqueci dele nem um dia...”
       Comovida, a enfermeira ajoelhou-se ao lado da cadeira, segurou a mão trêmula de dona Iêda e pediu que ela contasse mais sobre o que sentia. Começou a ouvir sobre um romance que ela viveu aos dezesseis anos. Contou que se apaixonou perdidamente e cometeu a insensatez de exibir para ele o seu tornozelo! Um gesto que, segundo ela, naquela época, unia para sempre um casal. E eles logo trataram de encontrar uma maneira de efetivar essa união. Azevedo planejava levá-la para passar a noite na casa de uma prima, e no outro dia, chegaria com dona Iêda na casa de seus pais, tornando o casamento inevitável. Porém, chorando bastante, ela contou que o plano fracassou, e que se casou com seu marido somente para “evitar o falatório”.
        A enfermeira tentou acalmá-la, pois o médico estava desconcertado com o que tinha rendido sua brincadeira, e somente observava calado o desenrolar da conversa. A filha de dona Iêda, que também assistia tudo, demonstrou grande desconforto, sentida pelo pai, já falecido. E assim, o mais prudente a fazer foi encerrar a visita por ali...
       O silêncio de todos no carro não precisava de tradução. A memória afetiva daquela mulher estava ali, presente, mostrando que o amor é parte do que somos, e não se apaga...

Casa 3

      Já estávamos indo embora quando dona Julieta veio atender a campainha. Aos setenta anos, sofria com dores articulares que prejudicavam sua mobilidade. Ir ao posto de saúde tornou-se tarefa laboriosa, o que justificava a visita domiciliar. Na sala, inúmeras sacolas com retalhos de tecido e caixas com artigos de armarinho. A antiga máquina Singer e o ofício de costureira foram herdados da mãe, quase centenária, falecida há alguns meses. Depressiva pela perda, contou que passou a costurar roupinhas para a coleção de bonecas Susy da mãe, e nos chamou para ir até um quarto localizado nos fundos da casa.
      Lá, encontramos prateleiras repletas de bonecas, com lindos vestidos de festa. A coleção de Dona Julieta contabilizava 179 bonecas. Todas organizadas, enfileiradas, embaladas, como se tivessem acabado de ser fabricadas. Ela foi mostrando os detalhes de cada modelo, falando do trabalho minucioso para cortar moldes tão pequenininhos, costurar rendas e bordar continhas. Segundo ela, o quarto de bonecas foi avaliado em mais de 12 mil reais por um especialista, que insistiu com dona Julieta para que ela participasse de exposições e eventos com suas peças, mas ela nunca aceitou.
    Quase instantaneamente, a enfermeira pensou em suas meninas. Queria que elas pudessem apreciar aquilo tudo, mas logo em seguida, foi tomada por outros pensamentos...Quanto mais dona Julieta falava, mais ela enxergava o sofrimento escondido naquela beleza toda. Imaginou aquela senhora trabalhando insistentemente, o dia todo criando novas roupinhas, trocando as bonecas, limpando uma a uma, tudo para tentar amenizar a tristeza que sentia com a falta da mãe, mas diante da admiração de todos, guardou suas impressões.
      Pelo adiantado da hora, e pelo cansaço físico e emocional daquela tarde, era preciso retornar. E as visitas foram encerradas, deixando ainda mais claro que a vida real muitas vezes desmente o que se aprende nos livros...

"O tom da conversa que ouço me criva, de setas e facas, e favos de mel. É a peleja do diabo com o dono do céu." A peleja do diabo com o dono do ceú, Zé Ramalho.