terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Sementes do Coração

         O espaço escondido atrás da sala de reuniões e em desuso há vários anos foi escolhido para abrigar o horto medicinal da unidade de saúde. E apesar do desafio em revitalizar aquele lugar tão deteriorado e sujo, o projeto encontrou solo fértil no coração da enfermeira.

         O pavimento incompleto, com mato alto, disfarçando o pequeno limoeiro, os restos de material elétrico e hidráulico descartados e entulhados após quebra ou defeito, e a desordem causada pelos gatos que frequentavam o lugar foram desaparecendo, e finalmente surgiu a terra que serviria de berço para as plantas que estavam por vir.

         A remoção dos blocos de pedra causou transtorno, fazendo uma fina camada de areia adentrar na unidade e cobrir as autoclaves. E ela foi chamada a responder por isso, prometendo solucionar o problema com o plantio das mudas. Naquele momento, percebeu que o projeto, que a princípio não era de sua autoria, era agora atribuído a ela, e não havia mais como se omitir...

       Na manhã seguinte, mesmo de folga, recebeu inúmeros telefonemas questionando sobre a entrega de um material de construção na unidade, que associaram a reforma do espaço para o horto, e conseqüentemente, ao nome dela. Desfez o equívoco, e passou por outros incontáveis dissabores, transferindo por completo a responsabilidade com o horto medicinal para uma colega.

       Dedicou-se a regar seu sonho de ser aprovada no doutorado, trabalhando com afinco para conquistar a única vaga oferecida para sua orientadora, amiga de toda a vida. Mas, entre as leituras científicas, lá estavam buscas sobre fitoterápicos e hortos medicinais, evidenciando que o desejo de concluir aquele feito já estava enraizado, e após a aprovação no processo seletivo, voltou a ser a força motriz do projeto.

       Com a ajuda financeira dos colegas e o trabalho de sua equipe, providenciou a pintura das paredes e construção dos canteiros, e, em uma atitude de coragem e ousadia, inscreveu o projeto em uma mostra regional de trabalhos, sendo selecionada, de forma surpreendente, para uma apresentação em nível municipal.

      Para a consecução das mudas, visitou duas instituições, e trouxe as plantas em carro próprio para o posto de saúde. Aguardou alguns dias, e como não houve qualquer mobilização para o plantio, no intuito de não desperdiçar as plantas, reuniu sua equipe e foi pessoalmente tratar de fazer o horto aparecer de fato, dividindo-se entre seus atendimentos em consultório  e o plantio durante toda uma intensa manhã de sol.

      O resultado final ainda não saiu como esperado. Na verdade, estava bem aquém do que ela planejou. Porém, foi suficiente para ela preencher os slides da apresentação com fotos e exibir todas as etapas do processo em público, orgulhosa por chegar até ali.

      Hoje, quem visita o lugar, vê mudas de babosa, capim santo, malva, cidreira, dentre outros tipos de plantas. Os tijolos retirados do antigo piso ainda fazem pilha ao lado do local que servirá um dia como composteira, um espaço de armazenagem do adubo que será produzido na própria unidade, como deve ser. Ela, no entanto, quando olha ao redor, vê que sua determinação e força de vontade podem fazer crescer e florescer coisas belas, enchendo de cor e beleza, até mesmo os terrenos mais áridos.


"As pessoas se convencem de que a sorte me ajudou, mas plantei cada semente que o meu coração desejou..." Coração Pirata, Roupa Nova.