terça-feira, 2 de novembro de 2021

Morador de rua ou pessoa em abandono?

 

           Não sabia precisar quando exatamente deparou-se pela primeira vez com a figura daquele homem franzino, de olhar triste, que assumia a posição de cócoras, e portava sempre consigo uma mochila surrada e suja. Tratava-se de um paciente em situação de rua, que vivia embaixo de um viaduto, e que procurou a unidade de saúde com quadro respiratório sugestivo de tuberculose.

            Como enfermeira, mais uma vez, sentiu-se chamada ao combate ao bacilo de Koch, o mesmo que há alguns anos roubou-lhe o colo do avô materno, e resolveu enfrentar o desafio de acompanhar um paciente complexo, que carregava o peso de sua invisibilidade legal e social.  

            Diante de um homem adoecido, sem família, sem documentos, sem teto e sem dinheiro, ela precisou revisitar seus próprios temores e conceitos para atendê-lo com dignidade, sem assumir uma mera atitude de piedade e compaixão.

            Nos encontros periódicos com o paciente, ela desconstruía a imagem de que morar na rua era sinônimo de drogadição, vagabundagem e/ou alta periculosidade, descortinando pouco a pouco a história de vida que aquele homem compartilhava com ela. Era como enxergar, como dizia o contista, o fio escondido sob as miçangas, ser capaz de ver o que ocultava a beleza do colar...

             Foi julgada e questionada várias vezes, na unidade de saúde e fora dela, sobre o seu real interesse em ajudar alguém naquela situação de pobreza e vulnerabilidade extremas, mas não pensou em desistir. Por acaso não é o caos do avesso que sustenta a beleza do bordado?

            E foi assim, a cada conversa, que a enfermeira percebeu que rotular aquele homem como incapaz de autogovernar-se, pautada no senso comum de que ele era iletrado e sozinho no mundo, só agravava sua desvantagem social. E a vinculação entre eles foi crescendo naturalmente, ficando a enfermeira responsável pela guarda de todos os exames e receitas, a pedido do paciente, que, por sua vez, obedecia de bom grado a todos os acordos firmados com ela.

            Sensível à necessidade de ofertar afeto, escuta e acolhimento, a enfermeira acionou as colegas do hospital especializado, que ficava no outro extremo da cidade, e encaminhou o paciente para lá. Ele abraçou sua oportunidade, conseguindo, já na primeira tentativa, vencer a distância, encontrar o local corretamente, e voltar para a unidade, com medicações, prescrição e relatório médico na mão, fazendo a seu modo, sua própria contra referência. Conseguiu ainda, assumir a posição de pé, sem o desconforto respiratório inicial que o fazia permanecer de cócoras. Ainda que simbolicamente, reergueu-se!

            De maneira surpreendente, mesmo em condições de vida tão adversas, era o único paciente a cumprir todo o tratamento prescrito de forma regular, resistindo ao preconceito e a rejeição social, contrariando com louvor o rótulo de incapaz...     

"Venha, o amor tem sempre a porta aberta/ E vem chegando a primavera/ Nosso futuro recomeça/Venha, que o que vem é perfeição..." Perfeição, Legião Urbana.