terça-feira, 6 de dezembro de 2022

A taça do mundo é nossa!

    

        Em qualquer outra situação, a transmissão de um jogo de futebol pareceria enfadonha para ela. Porém, em tempos de Copa do Mundo, era comum dar uma espiadinha na televisão entre os afazeres de casa ou do trabalho. E perfeitamente compreensível o sorriso encoberto pela máscara cirúrgica diante da Alemanha derrotada, ou sua torcida velada contra a Argentina.

      Observava intrigada como matérias jornalísticas, com previsões supersticiosas, baseadas em resultados pregressos em campo, detinham a atenção dos marmanjos que acreditavam em probabilidades absurdas que davam mais uma vitória como certa. Repetimos o resultado de um jogo de 2002. Seria bom presságio? A rainha Elizabeth morreu em ano de Copa. Seria mau presságio?

       Francamente… Ela estava mais interessada no pulsar do coração quando ouvia a mensagem de resistência e bravura de seu povo declarada no hino nacional. Precisava da alegria gratuita dos gritos de gol, da família reunida na sala, da euforia dos pequenos, estreantes torcedores, e das lembranças de outros campeonatos dos mais velhos.

      Queria a todo custo ter novas histórias de Copa do Mundo pra contar aos futuros netos. Falar orgulhosa do favoritismo de um time cinco vezes campeão, da trajetória dos meninos da periferia que tornaram-se ídolos nacionais, e da tradição de vestir-se em “amarelo-canário” e “verde-bandeira”.

       Entendida como superficial, para ela, a competição era momento importante e necessário. Pois, antes vivenciar o tumulto e a euforia, que a tristeza e o isolamento da doença, ou a mortal rivalidade partidária.

        Antes ainda, o expediente de trabalho reduzido, mesmo com a correria do trânsito que antecedia aos jogos. E era nessa certeza, que transpunha, no caminho de todo dia, uma lombada emblemática, pintada em verde e amarelo, para lembrar que em toda disputa, existem altos e baixos, mas é preciso e possível seguir...

Noventa milhões em ação / Pra frente, Brasil, do meu coração (…) De repente é aquela corrente pra frente / Parece que todo o Brasil deu a mão (…) Todos juntos, vamos, pra frente, Brasil

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Morador de rua ou pessoa em abandono?

 

           Não sabia precisar quando exatamente deparou-se pela primeira vez com a figura daquele homem franzino, de olhar triste, que assumia a posição de cócoras, e portava sempre consigo uma mochila surrada e suja. Tratava-se de um paciente em situação de rua, que vivia embaixo de um viaduto, e que procurou a unidade de saúde com quadro respiratório sugestivo de tuberculose.

            Como enfermeira, mais uma vez, sentiu-se chamada ao combate ao bacilo de Koch, o mesmo que há alguns anos roubou-lhe o colo do avô materno, e resolveu enfrentar o desafio de acompanhar um paciente complexo, que carregava o peso de sua invisibilidade legal e social.  

            Diante de um homem adoecido, sem família, sem documentos, sem teto e sem dinheiro, ela precisou revisitar seus próprios temores e conceitos para atendê-lo com dignidade, sem assumir uma mera atitude de piedade e compaixão.

            Nos encontros periódicos com o paciente, ela desconstruía a imagem de que morar na rua era sinônimo de drogadição, vagabundagem e/ou alta periculosidade, descortinando pouco a pouco a história de vida que aquele homem compartilhava com ela. Era como enxergar, como dizia o contista, o fio escondido sob as miçangas, ser capaz de ver o que ocultava a beleza do colar...

             Foi julgada e questionada várias vezes, na unidade de saúde e fora dela, sobre o seu real interesse em ajudar alguém naquela situação de pobreza e vulnerabilidade extremas, mas não pensou em desistir. Por acaso não é o caos do avesso que sustenta a beleza do bordado?

            E foi assim, a cada conversa, que a enfermeira percebeu que rotular aquele homem como incapaz de autogovernar-se, pautada no senso comum de que ele era iletrado e sozinho no mundo, só agravava sua desvantagem social. E a vinculação entre eles foi crescendo naturalmente, ficando a enfermeira responsável pela guarda de todos os exames e receitas, a pedido do paciente, que, por sua vez, obedecia de bom grado a todos os acordos firmados com ela.

            Sensível à necessidade de ofertar afeto, escuta e acolhimento, a enfermeira acionou as colegas do hospital especializado, que ficava no outro extremo da cidade, e encaminhou o paciente para lá. Ele abraçou sua oportunidade, conseguindo, já na primeira tentativa, vencer a distância, encontrar o local corretamente, e voltar para a unidade, com medicações, prescrição e relatório médico na mão, fazendo a seu modo, sua própria contra referência. Conseguiu ainda, assumir a posição de pé, sem o desconforto respiratório inicial que o fazia permanecer de cócoras. Ainda que simbolicamente, reergueu-se!

            De maneira surpreendente, mesmo em condições de vida tão adversas, era o único paciente a cumprir todo o tratamento prescrito de forma regular, resistindo ao preconceito e a rejeição social, contrariando com louvor o rótulo de incapaz...     

"Venha, o amor tem sempre a porta aberta/ E vem chegando a primavera/ Nosso futuro recomeça/Venha, que o que vem é perfeição..." Perfeição, Legião Urbana.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Plié, chassé, jeté...

 

         Quando decidiu fazer a aula experimental, encontrou uma bailarina vestida de carne e osso, que se afastava daquela figura idealizada dos livros, dos filmes e das caixinhas de música. Uma figura tão real que ela acreditou ser possível aprender a dançar naquela altura da vida.

        As colegas de turma exibiam uma desenvoltura que ela não conseguia alcançar. Conheceu as seis posições, a mão de bailarina, mas não conseguia saltar. Sequer conseguia coordenar as posições de braço e cabeça nos exercícios na barra, mas adorava mover-se ao som da música suave, e já ganhava certo equilíbrio, embora a perfeição dos passos ainda fosse um grande desafio.

        Descobriu que as pernas das bailarinas devem sempre ser cor de rosa, que havia um dia dedicado a elas, já sabia escolher sapatilhas melhores e estava convencida de que dançar independia da idade e do peso. Mesmo assim, a cada sábado, prometia que não voltaria, mas lembrava da acolhida carinhosa da professora na sua chegada, e do empurrãozinho dela, que ajudava a conseguir alcançar os pés, e acabava voltando.

       A pandemia fechou a escola e as aulas virtuais eram o que faltava para justificar o fim daquela aventura. Afinal, já havia abandonado várias atividades físicas, e aquela seria apenas mais uma. No entanto, a professora corrigia cada detalhe individualmente, como em aula convencional, e vendo todo aquele esforço, ela tentava corresponder, mesmo com as crianças interferindo na sala de tempos em tempos.

        No retorno presencial, surgiu o anúncio de um festival de dança. Indecisa, foi participando dos ensaios, envolvida pelo entusiasmo das colegas. E foi prosseguindo, amedrontada nos encontros com a turma avançada, cuja professora parecia ser bem mais enérgica. 

       Com a proximidade da data de apresentação, percebeu que o conjunto precisava dela, e desistir já não era uma opção.

       Levava a “Valsa das Flores” na memória no caminho para o trabalho, lembrava da professora, balançando a cabeça como uma boneca, marcando o compasso da música, e sorria. 

       E foram muitos vídeos e aulas extras, mas ela permanecia insegura com a coreografia, e foi assim até o grande dia.

       Nos bastidores do espetáculo, ela e uma amiga deram as mãos. Engoliram o choro pelos pais falecidos vendo uma outra bailarina receber sua sapatilha de pontas do pai. 

           Entrou e dançou diante de um público que estava frente a frente com ela, no mesmo plano. 

       Ofegante, de joelho, estática na posse final, recebeu aplausos demorados. Conseguiu! E em um misto de orgulho e alívio, correu para abraçar a filha mais velha, que chorava de emoção, exatamente como ela fazia no papel de mãe nos festivais da escolinha.

       Estava certa de que foi principalmente o desejo de não decepcionar a professora, que depositou tanta confiança nela, que a levou até ali. Conseguiu, graças a perseverança de uma menina, que um dia, como ela, também não desistiu, e tornou-se professora de ballet...

"Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena acreditar no sonho que se tem, ou que seus planos nunca vão dar certo, ou que você nunca vai ser alguém..." Mais uma vez, Legião Urbana. 

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Sementes do Coração

         O espaço escondido atrás da sala de reuniões e em desuso há vários anos foi escolhido para abrigar o horto medicinal da unidade de saúde. E apesar do desafio em revitalizar aquele lugar tão deteriorado e sujo, o projeto encontrou solo fértil no coração da enfermeira.

         O pavimento incompleto, com mato alto, disfarçando o pequeno limoeiro, os restos de material elétrico e hidráulico descartados e entulhados após quebra ou defeito, e a desordem causada pelos gatos que frequentavam o lugar foram desaparecendo, e finalmente surgiu a terra que serviria de berço para as plantas que estavam por vir.

         A remoção dos blocos de pedra causou transtorno, fazendo uma fina camada de areia adentrar na unidade e cobrir as autoclaves. E ela foi chamada a responder por isso, prometendo solucionar o problema com o plantio das mudas. Naquele momento, percebeu que o projeto, que a princípio não era de sua autoria, era agora atribuído a ela, e não havia mais como se omitir...

       Na manhã seguinte, mesmo de folga, recebeu inúmeros telefonemas questionando sobre a entrega de um material de construção na unidade, que associaram a reforma do espaço para o horto, e conseqüentemente, ao nome dela. Desfez o equívoco, e passou por outros incontáveis dissabores, transferindo por completo a responsabilidade com o horto medicinal para uma colega.

       Dedicou-se a regar seu sonho de ser aprovada no doutorado, trabalhando com afinco para conquistar a única vaga oferecida para sua orientadora, amiga de toda a vida. Mas, entre as leituras científicas, lá estavam buscas sobre fitoterápicos e hortos medicinais, evidenciando que o desejo de concluir aquele feito já estava enraizado, e após a aprovação no processo seletivo, voltou a ser a força motriz do projeto.

       Com a ajuda financeira dos colegas e o trabalho de sua equipe, providenciou a pintura das paredes e construção dos canteiros, e, em uma atitude de coragem e ousadia, inscreveu o projeto em uma mostra regional de trabalhos, sendo selecionada, de forma surpreendente, para uma apresentação em nível municipal.

      Para a consecução das mudas, visitou duas instituições, e trouxe as plantas em carro próprio para o posto de saúde. Aguardou alguns dias, e como não houve qualquer mobilização para o plantio, no intuito de não desperdiçar as plantas, reuniu sua equipe e foi pessoalmente tratar de fazer o horto aparecer de fato, dividindo-se entre seus atendimentos em consultório  e o plantio durante toda uma intensa manhã de sol.

      O resultado final ainda não saiu como esperado. Na verdade, estava bem aquém do que ela planejou. Porém, foi suficiente para ela preencher os slides da apresentação com fotos e exibir todas as etapas do processo em público, orgulhosa por chegar até ali.

      Hoje, quem visita o lugar, vê mudas de babosa, capim santo, malva, cidreira, dentre outros tipos de plantas. Os tijolos retirados do antigo piso ainda fazem pilha ao lado do local que servirá um dia como composteira, um espaço de armazenagem do adubo que será produzido na própria unidade, como deve ser. Ela, no entanto, quando olha ao redor, vê que sua determinação e força de vontade podem fazer crescer e florescer coisas belas, enchendo de cor e beleza, até mesmo os terrenos mais áridos.


"As pessoas se convencem de que a sorte me ajudou, mas plantei cada semente que o meu coração desejou..." Coração Pirata, Roupa Nova.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Manhã na Paulista

 

        O grupo de amigas decidiu deixar o hotel para aproveitar a manhã de folga do evento científico e realizar compras a preços populares em um bairro próximo ao local. Ela, no entanto, simulou uma indisposição e não acompanhou o grupo.

        Decidiu sair a pé conhecendo um pouco mais de perto a cidade. No caminho, deparou-se com uma jovem loira, alta e magra, com olhos bem marcados por sombra escura, usando braceletes em couro preto com spikes, calça jeans de cintura baixa e camiseta branca básica de alcinha, deixando à mostra uma tatuagem de flor de lótus em seu colo, entre os seios.

        Os sons  de sua guitarra e de sua voz potente competiam com o barulho do trânsito intenso, e sua qualidade artística em pouco tempo gerou aglomeração ao seu redor, e um bom dinheiro preencheu a case de seu instrumento musical que estava deitada ao chão em frente ao suporte do microfone.

       Ela aproveitou bastante aquele show a céu aberto. Cantou, filmou a performance da moça em seu cover perfeito da Avril Lavigne, e seguiu seu caminho.

       Escolheu visitar uma das inúmeras galerias do centro da cidade, antigos ícones do modernismo, espaços que entraram em decadência e ainda sobrevivem graças ao comércio popular. Encontrou um antiquário bastante charmoso, com uma atmosfera mágica. A atendente era uma senhora de cabelos grisalhos, com óculos pequeninos em formato gatinho, muito elegante, vestida com uma blusa de tricô, que ostentava um lindo broche de pedrarias em sua maxi gola, e uma calça de alfaiataria, de corte impecável.

         A suave música ambiente relembrava clássicos da MPB e ajudava a mergulhar na história de cada objeto disposto ali. Viu lindos camafeus, melindrosas, ânforas pintadas a mão e vasos de murano azul. Nas paredes, várias fotos da senhorinha, dona do local, acompanhada de artistas de uma famosa emissora de televisão, lembranças de seus tempos como figurante, quando surgiu a ideia de assumir o negócio de peças antigas de uma amiga.

         Saiu da loja e seguiu deslumbrada com a série de itens exclusivos das vitrines diante de seus olhos. Percebeu que já estava distante do hotel e resolveu retornar. Ao tentar atravessar a rua, observou uma mulher, na parada de ônibus, segurando a mão de uma menina com estatura de aproximadamente quatro anos.

       Como em um quadro, a garoa que insistia em permanecer, tornava a imagem da garotinha ainda mais bela....Pele clara, com bochechas cor de romã, coradas pelo frio, cabelo castanho, liso, em corte Channel, blusa branca com mangas fofas, salopete em veludo azul marinho, meia calça e sapatinho vermelho em verniz. Uma verdadeira boneca viva, que subiu no coletivo e desapareceu como uma miragem...

           Seguiu pela calçada buscando um local agradável para um café, e quase esbarrou em uma mulher apressada, que parecia ter saído de um filme da década de 80, ambientado em Nova Iorque. Com batom vermelho vivo, vestido tubinho, acessórios caros, salto agulha e um sobretudo que arrematava seu visual executivo, ela segurava um copo da Starbucks enquanto acenava para o táxi, apoiando o celular no ombro enquanto conversava...

          Sorriu desejando que aquela mulher esbarrasse em um grande amor, ou mesmo que se interessasse pelo taxista, ou outro alguém qualquer que considerasse adorável sua maneira estabanada, e consertasse a bagunça de sua vida e de seu coração...E que vivesse feliz pra sempre, após receber um beijo apaixonado no saguão de um aeroporto, minutos depois de desistir de partir para outro país a trabalho...

           Avistou feliz uma confeitaria com ambientação romântica, em tons pastéis, papel de parede floral e uma delicadeza em cada detalhe do serviço. Lá, os jogos americanos eram de papel, com uma moldura impressa, e sobre a mesa havia um potinho com giz de cera, convidando os clientes a desenhar algo.

           Ela aceitou a brincadeira e tentou desenhar em traços rápidos a última mulher que encontrou em seu passeio. A garçonete perfumada e sorridente, de lindos olhos azuis, que vestia um conjunto de avental e touca estampadas com cupcakes coloridos. Abaixo do desenho, deixou por escrito um agradecimento pelo atendimento recebido e saiu.

             Ao retirar a mesa, vendo que se tratava dela, a garçonete exibiu o papel para todos os colegas do lugar e fixou a folha no espaço dedicado a exposição dos desenhos na confeitaria.

             Ela observava tudo de longe, através da janela, e retornou para hotel renovada. Tirou grandes lições ao ver todo o refinamento de cada uma daquelas mulheres, e a responsabilidade e alegria com que exerciam seus papéis.

            Chegou a tempo de receber as amigas, carregadas de sacolas, repletas de imitações grosseiras de roupas e acessórios de marcas renomadas. Prometeu acompanhá-las no dia seguinte e escutou pacientemente todas as perícias do grupo durante o passeio da manhã.

           Lembrou-se do pequeno porta jóias de porcelana européia, estilo Luís XIV, pintado a mão, que adquiriu no antiquário e estava guardadinho na sua suíte, e teve certeza de que fez a melhor escolha para aquele dia...

 "Na medida do impossível, tá dando pra se viver. Na cidade de São Paulo, o amor é imprevisível como você,e eu, e o céu..." Lá vou eu (Zélia Ducan).

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Livre Mercado

 

          O trânsito próximo a rua principal do bairro já estava complicado no início da manhã. Era dia de feira livre e os desvios eram inevitáveis para driblar a quantidade imensa de veículos das pessoas atraídas como imãs para aquele espaço popular.

         Bancas com produtos diversos enfileiradas dos dois lados do canteiro central ofereciam desde frutas e verduras até produtos inusitados como remédios, cosméticos, eletrônicos e roupa de cama, mesa e banho.

         Uma multidão em movimento em meio a sons, cores, cheiros e sabores. Feirantes, fregueses e passantes andavam, comiam, negociavam coisas, conversavam e riam, compondo uma paisagem hipnotizante e cheia de vida.

         Uma experiência inesperada para ela, acostumada ao conforto do ambiente refrigerado do supermercado... Os ritornelos dos feirantes se misturavam com a conversação criando sons indecifráveis. Lonas esticadas pelo chão, caixas de isopor, gaiolas com bichos e mudas de plantas expostas, formavam uma arquitetura quase labiríntica.

        A quantidade de serviços oferecidos chamou sua atenção. Na feira era possível, por exemplo, trocar a película danificada do celular, consertar panelas, a ainda conseguir adquirir alguma peça de um objeto antigo que precisasse de reparo.

      Lembrou-se dos tempos de criança, quando acompanhava a mãe na feira, visualizando de longe a barraca de plantas medicinais, repleta de maços de eucaliptos, talos de babosa, folhas de boldo, e garrafadas criadas por especialistas em curar qualquer mal.

     A feira carrega consigo uma áurea de mistério. Montada de madrugada, ela surge com o dia e desaparece após o almoço, em um movimento de construção e desconstrução eterna.

     Percorrendo aquele emaranhado, ela teve a sensação de encontrar um elo perdido na história humana, imaginando que, guardadas as diferenças locais, aquele tipo de comércio ambulante sempre funcionou da mesma forma ao longo do tempo, ao redor do mundo.

      O ecletismo do público, representado por pessoas de todas as idades e classes sociais, as negociações em busca do melhor preço, as frutas cortadas na hora, assim como os frangos desossados, e o cheiro forte de peixe ofereciam aos sentidos um espetáculo capaz de gerar histórias a perder de vista.

       Sentiu um pouquinho o gosto da vida simples e descomplicada de seus colegas de trabalho que a acompanhavam, e decidiu aceitar mais vezes o desafio de trocar experiências de um mundo “prontinho e organizado” por aquelas de um mundo perfeito e delicioso exatamente por ser imprevisível...

“A vida não é problema, é batalha, desafio. Cada obstáculo é uma lição, eu anuncio...” A vida é desafio, Racionais Mc's

 

sábado, 4 de julho de 2020

Ao vencedor, as formigas!


           Era pôr do sol em São Benedito. O menino correu para o seu quarto, pegou sua latinha vazia de leite em pó e se dirigiu para a rua ao encontro dos amigos. A revoada de tanajuras se aproximava e eles estavam a postos, com chinelos nas mãos, esperando o momento certo para interromper aquele voo e capturá-las.
           O antigo costume indígena de caçar e comer formigas ganhava outro significado. Agora, era uma divertida brincadeira de rua para a molecada, que competia pelos insetos sem se importar com uma ou outra dolorida picada.
          Rapidamente, as formigas perdiam a parte dianteira do corpo e as asas, e as latinhas ficavam cheias apenas da parte comestível: o abdômen das içás! Após a captura, as crianças voltavam orgulhosas para casa e entregavam para suas mães o apurado do dia.
          As formigas eram lavadas e fritavam na manteiga exalando um cheiro forte que impregnava todo o ambiente e virava mais uma doce memória de infância daqueles meninos.  Acompanhadas de farofa, as formigas se transformavam em uma iguaria exótica, popularmente conhecida como “bunda de tanajura”. Crocantes e gordurosas, tinham um sabor indescritível, melhor que qualquer salgadinho de festa. E todo esse ritual se repetia por mais alguns dias, enquanto houvesse a oferta do animal...
           Era pôr do sol em Fortaleza. Tempos difíceis de confinamento por uma pandemia que causava várias perdas e tolhia a alegria e a liberdade de todos. Depois de mais de trinta anos, o menino, agora casado e com dois filhos, contemplava pela janela de seu apartamento o degradê alaranjado que se formou no céu. Lembrou da caçada das tanajuras e sorriu. Capturou a imagem diante de seus olhos em uma foto e compartilhou no status do aplicativo do celular. Ainda que involuntariamente, esperava talvez despertar algumas boas lembranças e acalentar quem o visse...
" Há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração. Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão..." (Bola de Meia, bola de gude, 14 Bis)