quarta-feira, 29 de abril de 2020

Quarenta anos em quarentena dias

        Silenciou seus gritos. Encimesmada, ensudercia por dentro em um caminho que parecia sem volta. No percurso de casa para o trabalho, observava o trânsito de pessoas e veículos em plena quarentena e questionava a si mesma se existiam tantos serviços essenciais em sua cidade que justificassem aquela intensa movimentação. Era isso, ou encher-se de revolta diante da constatação de que seus esforços como profissioanal de saúde não adiantavam nada diante dos comportamentos irreponsáveis da população em geral.
          Como em ciclo cardíaco de sístole e diástole, sua vida ia do vale ao topo do monte em fração de segundos. Diante de tantos atos tresloucados que testemunhava em seu dia a dia no trabalho, era cada vez mais difícil controlar seus impulsos.
      Parafraseando Elis, sentia que “a lucidez a levava às raias da loucura”. Era julgada como desvairada, e aconselhada a perseguir uma conduta humilde e mansa, típica de um espírito contrito que ela nunca abrigou em si. Aplicava um esforço sobrehumano nesse sentido, sem qualquer êxito.
 Capricorniana, introspectiva, avessa a superficialidade, buscava compreender seus sentimentos diante desse momento tão delicado nas conversas por aplicativos com amigos seletos, pois os hobbies há muito tempo já não amenizavam as tensões que sofria.
     Torcia pela recuperação do reitor poeta de sua universidade de origem, anciosa pela expressão de seu olhar como paciente em um doce e profundo poema, distante dos relatos sofridos dos outros sobreviventes a toda essa desgraça, que espalhavam palavras de pânico e não ofereciam alento aos demais.
  Impetuosa, queria mesmo poder chorar compulsivamente sempre que possível, até esgotar toda a sua angústia, pois acreditava que assim poderia limpar seus pensamentos embassados com a mesma facilidade com que limpava as lentes dos óculos, turvas pelo uso das máscaras. Sem essa alternativa, engolia o choro como criança, e a garganta ardia, os olhos queimavam e o sangre fervia com toda essa frustração...
     Passaram-se quarentena dias... Silenciou seus gritos.

"Quando eu soltar a minha voz, por favor, entenda, é apenas o meu jeito de viver o que é amar..." Sangrando, Gonzaguinha.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

A palavra é parcimônia


        Todos os dias, impreterivelmente, revestia o corpo com touca, máscara, protetor facial, avental e luvas descartáveis antes de iniciar seu trabalho. O espírito, no entanto, estava vacilante...Alguns dias, aparecia em traje mais formal, cheio de coragem e ânimo. Em outros, parecia despido, deixando à mostra toda a fragilidade e insegurança em lidar com uma doença tão devastadora.
     Quase irreconhecível, foi questionada por uma paciente sobre o motivo daquele atendimento tão distante e frio. Caiu em si, e sentiu-se envergonhada diante da constatação de que seu cuidado, sempre tão vivo, tão afetuoso, estava morto. Explicou a necessidade de manter aquela conduta de afastamento, assegurando que em breve voltaria a tratá-la com a espontaneidade de sempre, embora em seu íntimo não estivesse convencida disso...
       Tinha conhecimento dos amigos adoecidos, e o exemplo dos colegas que resistiam, abandonando suas casas e famílias para dedicar-se a ajudar a quem precisava, e continuava dia após dia em seu penar.
        Pouco adiantava agarrar-se às notícias positivas vinculadas na mídia, pois o alívio ia embora em fração de segundos, como se seguisse o deslizar dos dedos na tela do celular. Logo em seguida, a sensação de impotência novamente ganhava forma diante de números assustadores de óbitos, e deixava os pensamentos turvos.
       No entanto, seu senso de justiça insistia em ser superior ao seu temor, e ela repugnava a conduta de quem se valia de inúmeras estratégias para se esquivar do atendimento a pessoas sintomáticas. Assim, seguia no front da pandemia, o maior desafio de sua trajetória profissional até então, optando pela coragem, pois não suportaria relembrar esses momentos sob o peso da desonra da covardia...

"Se me der um beijo eu gosto/ Se me der um tapa eu brigo/ Se me der um grito não calo/Se mandar calar mais eu falo./ Mas se me der a mão, claro, aperto/ Se for franco, direto e aberto/Tô contigo amigo e não abro/ Vamos ver o diabo de perto..." Recado, Gonzaguinha.