sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Felizes para sempre


      O teatro estava lotado. Famílias inteiras ansiosas pelo início do espetáculo de dança infantil de uma renomada escola da cidade. Ela estava acompanhada do marido, da filha menor de três anos e da avó coruja, ocupando uma poltrona na terceira fileira, à altura central do palco. Havia comprado os ingressos com bastante antecedência para garantir esse bom lugar. Era a apresentação de Aladdin.
       Enquanto algumas pessoas retardatárias ainda se acomodavam, seu esposo conferia o funcionamento da câmera, preocupado em assegurar doces lembranças em foto e vídeo para a filha primogênita, que estaria em cena naquela noite.
        Em poucos instantes o palco estava tomado por alegres odaliscas, que sacudiam seus véus coloridos e faziam tilintar as medalhinhas que lindamente ornavam suas fantasias.
       As turminhas do Infantil exibiram as danças mais comoventes. Aquelas menininhas com suas saias de tule cheias de brilho pareciam pequeninos pirilampos se esbarrando pelo ar, buscando a todo custo encontrar o seu lugar correto no palco.
Singelas imperfeições renderam risadas gostosas ao público, como a criança atrasadinha, que correu apressada, na ponta dos pés, para alcançar as amigas que já se escondiam nos bastidores do teatro.
        Como se não bastasse, em meio à cena do mercado, uma das graciosas frutinhas, que dançava com o braço machucado, suspenso em uma tipóia, desequilibra-se e cai. Imediatamente, as coleguinhas que a rodeavam esqueceram a coreografia e correram para ajudar, arrancando um belo suspiro coletivo da platéia.
     E assim terminou o primeiro ato. No intervalo, a mãe estava surpresa com o bom comportamento da filha caçula, que além do fascínio pelo espetáculo, mantinha-se acordada após seu horário habitual de sono na intenção de ver a irmã mais velha dançando.
       As lâmpadas mágicas abriram o segundo ato. Olhando fixamente para a filha bailarina, ela entrou naqueles momentos em que a consciência nos desperta para o passar do tempo. Recordou os outros anos em que esteve ali, observando sua menina, e encontrou sensíveis diferenças...
      A filha facilmente localizou a família, mas não era mais aquela que acenava e lançava beijinhos pelo ar nessa hora. Algo da inocência de outras épocas já havia ido embora, e ela se conteve, e apenas sorriu.
     A menina seguiu todos os passos ensaiados com precisão e segurança. Não lançou sequer um olhar para as colegas ao lado, no intuito de conferir e acompanhar o que faziam como era seu costume. Estava radiante e cumpriu sua dança com maestria.
    Ao final, a irmãzinha aplaudiu demoradamente do colo da mãe, e o pai exibia com orgulho as imagens exclusivas que conseguiu captar. Ele olhou para a esposa com ternura e beijou sua mão delicadamente. E ela compreendeu sua satisfação pelo êxito da pequena sem que qualquer palavra fosse necessária.
    O espetáculo prosseguiu permeado pela magia dos contos de fada, com belas cenas protagonizadas pelo casal Jasmine e Aladdin, representado pelos alunos de teatro do ensino fundamental. E eles foram tão convincentes juntos, que fizeram aquela mulher imergir e divagar pela história...
   Começou a pensar na princesa que se rendeu aos encantos de um príncipe que compartilhava seus ideais de liberdade e a convidou a sair pelo mundo descobrindo novidades. Pensou também naquele príncipe, tão íntegro a ponto de abdicar a todo um reino, e à riqueza maior que era o amor de sua princesa, apenas para manter-se fiel aos seus valores e princípios. E suspirou.

    Saiu do teatro reflexiva e feliz. Recebeu com um abraço bem apertado e parabenizou muito sua estrela mirim, que por mais uma vez encheu seu coração de orgulho e alegria. 

"Um mundo ideal/ Um mundo que eu nunca vi/ E agora eu posso ver/ E lhe dizer que estou em num mundo novo com você/ E eu num mundo novo com você..."
Um mundo ideal, Aladdin.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Jornada ao interior

                                                           
       A viagem começou meio sem graça, pois o caminho até a saída da cidade não apresentava novidade alguma. Entediada, ela ligou o rádio e acariciou o cabelo do marido, mas ele logo rejeitou o carinho, alegando que acabaria com sono e que precisava manter-se alerta. As crianças, no banco de trás, se ocupavam com seus brinquedos e quitutes preferidos, que ela selecionou tão carinhosamente na noite anterior à partida. E a família seguia em busca de seu destino final: a serra.
         Ela começou a olhar pela janela a paisagem que pouco a pouco ia se modificando e ganhando ares mais rústicos. Grandes fábricas e comércios exibindo marcas famosas foram ficando para trás. Agora, ela se deparava com um gado magro, comendo à beira da estrada, em um local de vegetação escassa. Não era uma cena bonita, mas foi capaz de fazer seu pensamento divagar...
        O carro seguiu tranquilamente e alcançou cidadezinhas encantadoras. Ela viu crianças debulhando espigas de milho, e as mães utilizando pequenos fogaréus para assá-los e vender aos viajantes. As bancas de frutas variadas também se multiplicaram, e ver aquele colorido tão vivo e brilhante de todas elas a fez pensar no sabor inigualável que traziam consigo. Quis pedir para parar e averiguar mais de perto, mas como a recusa era certa, preferiu não arriscar.
        Na sequência, avistou também muitas igrejas, cheias de detalhes de uma arquitetura bem modesta, e foi mostrando para a filha maior, que questionou o pequeno tamanho das construções. Desde bebê, estava acostumada a frequentar igrejas de grande porte, o que justificava tal estranhamento. A partir de então, a menina passou a prestar mais atenção no que se apresentava pelo caminho, e perguntou sobre locais que também se repetiam: os cemitérios! Infelizmente, apesar do esforço da mãe, ela não conseguiu compreender o porquê de tantas estátuas de anjos, imagens e outros artefatos para homenagear pessoas que já estavam mortas...
        A viagem prosseguiu, e a esta altura, as crianças já apresentavam sinais de cansaço, se envolvendo em pequenas disputas e contracenando episódios de birra e muito choro. Foi neste momento que ela avistou uma casa que oferecia café regional e desta vez solicitou a parada na estrada. E o marido a atendeu.
       Após acomodar as crianças em volta da mesa com o pai, serviu sorvete para elas e saiu para explorar minuciosamente aquele lugar… Encontrou prateleiras repletas de vidros de doces caseiros com sabores variados, mel e outros produtos típicos da região. Ornamentando uma destas prateleiras, avistou umas canecas de chopp de porcelana bem antigas, que a remeteram à infância na casa da avó. E como turista em sua própria terra, não resistiu e fotografou o achado.
     Voltou à mesa e tomou uma xícara de café, quente, puro e forte, com um sabor inigualável… Preferiu não comer nada, para não correr o risco de embotar aquele sabor delicioso. Estava saciada com tudo o que estava vivenciando até ali. Olhava pela varanda a simplicidade do lugar e pensava em como todos nós somos capazes de criar uma série de necessidades que são completamente desnecessárias para sermos felizes…
        Após esta pausa, eles retomaram a viagem. O acostamento logo desapareceu e deu lugar a um paredão de vegetação fechada, bem verdinha. Uma imagem de encher os olhos… O carro ia subindo a serra e ultrapassando pequenos reflexos de luz do sol que passavam por entre as árvores. O rádio silenciou e ela o desligou. As crianças dormiram. Ela seguiu calada, enebriada por tudo que estava ao seu redor.
        Finalmente chegaram ao seu destino. Ela desceu do carro, contemplou a imensidão da serra e sentiu uma paz indescritível. Após a chegada ao hotel, um lugar bastante aconchegante e acolhedor, ela pediu para almoçar na cidade, ansiosa por aproveitar cada minuto daquele lugarzinho que ela aprendeu a amar.
       Na cidade, a família foi recepcionada em um restaurante por uma música gostosa de ouvir ao violão: Final feliz, de Jorge Versilo. Depois da refeição, ela saiu passeando com as filhas pela praça, percorrendo as banquinhas de artesanato. De repente, foi surpreendida por uma série de motoqueiros, que aceleraram suas motos e saíram um a um, bem coordenados, proporcionando um espetáculo a todos que ali estavam.
         Eles voltaram ao hotel, e caminhando até seu chalé ela avistou um casal de jovens. O rapaz tocava para a moça ao violão a música My Girl, em um espaço zen do hotel. Observando aquilo, ela imaginou o quanto seria bom se soubesse tocar e estar ali também com seu violão, cantando como ele, pois a doçura daquele gesto pareceu bastante adequada àquele lindo cenário de tranquilidade e paz.

“Há um vilarejo ali, onde areja um vento bom/ Na varanda, quem descansa vê o horizonte deitar no chão...”

Vilarejo, Marisa Monte.

Cuidar: uma aventura entre tantas outras


             Miguel era um lindo bebê, daqueles de olhos claros, de uma cor que você jamais cansa de olhar. Daqueles que choram fazendo beicinho e você “perde tempo” consolando. Mal chegou, e rapidamente tornou-se o xodó do berçário. Seria até hipocrisia dizer que não existia um atendimento VIP para ele...
            A acompanhante era uma mãe muito consciente, colaborativa, daquelas dispostas a tudo pelo filho. Adolescente, bem novinha mesmo, mas segura do seu papel, do tipo “nasceu pra ser mãe”.
            Quando a enfermeira examinou direitinho o bebê, encontrou uma má-formação em sua mão direita. Constatou com alívio que a mão esquerda era perfeita, o que facilitaria sua adaptação à deficiência quando crescesse.
            Após alguns dias de internação por pneumonia, o quadro clínico do bebê começou a se agravar. Miguel também era portador de uma cardiopatia congênita complexa, o que em poucos dias colocou seu nome na maldita lista de espera da central de leitos por uma vaga em UTI neonatal. E toda a equipe de Enfermagem ficou mobilizada, ligando o tempo todo, insistindo muito mesmo com o pessoal da regulação para conseguir a tal vaga. E ele esperando, resistindo... O coração da enfermeira, a esta altura, estava mais doente que o dele, achando que ia perdê-lo a cada urgência, a cada episódio de cianose intensa. E ele ali, cheio de vontade de permanecer vivo, brigando com a saturação que insistia em cair.
              Um dia, a enfermeira chamou a assistente social ao berçário e pediu que avisasse a mãe de Miguel para trazer quem quisesse vê-lo no horário de visita. Ela, que sempre vinha só, veio acompanhada do pai do menino. Era um homem bem mais velho, motorista de ônibus. Vendo o estado de seu filho, ele ligou para a firma, pedindo dinheiro ao chefe para pagar uma internação na UTI de uma instituição particular. E foi só decepção...
              A tranquilidade daqueles pais surpreendia. O bebê gravíssimo, e eles de mãos dadas, em silêncio, sem trocar nenhuma palavra, ao lado do leito. Enquanto isso, a equipe de Enfermagem sempre atarefada, trabalhava duro durante todo o plantão, obstinada em cumprir a rotina de cuidados diária a contento. Porém, não estava alheia aquele sofrimento, uma vez que era o berço no canto da unidade o mais visitado por todos.
             Com o decorrer dos dias, a enfermeira estava indignada com a demora da central de leitos, que sempre lhe parecia tratar com descaso ou indiferença uma situação tão urgente e delicada. Diante disso, em um momento de maior revolta, ela decidiu assumir a remoção e transferir a criança sem garantia alguma de vaga, desafiando a pessoa da regulação que sugeriu isso por telefone.
             Reuniu o material que julgava necessário, e não faltou quem a ajudasse. A médica de plantão naquele dia, no entanto, relutou bastante em remover a criança com ela, alegando o risco de óbito durante o transporte, e o fato de que poderiam nem ser recebidas, voltando com o bebê para o hospital onde estavam. Porém, ficou acuada frente à equipe, pois de alguma forma foi colocada à prova, desafiada pela enfermeira. E, por fim, terminou concordando com o feito. Saíram as duas, com a técnica de Enfermagem e a mãe, que estava ciente de tudo e foi estimulada pela torcida das outras mães acompanhantes pelo seu filho.
             No grande hospital de referência pediátrica, a recepção não podia ser pior. De imediato, foram barradas na porta da sala de reanimação. Uma UTI disfarçada, onde crianças de todas as idades dividiam um espaço mínimo. De berços aquecidos a berços grandes. Olhando em volta, era possível lembrar aquelas imagens jornalísticas de abrigos de sobreviventes de alguma tragédia. E realmente estavam todos desabrigados. A plantonista exaltada, afirmou que a única vaga disponível era na pia da unidade. Ainda assim, insultadas, continuaram todas lá, discutindo o que fazer, sem ideia do que estava prestes a acontecer...
            De repente, uma técnica de Enfermagem chama aos gritos. Avisa que há um bebê em parada respiratória. Logo todas correm e as duas equipes se misturam. Nessa hora, elas já nem existiam mais. Todas as profissionais estavam juntas em harmonia, a despeito das agressões trocadas há bem pouco tempo. A enfermeira visitante conseguiu auxiliar no socorro ao bebê sem grande dificuldade, encontrando tudo surpreendentemente no carrinho de urgência estranho, quando não achava nada direito no carrinho de seu próprio ambiente de trabalho, tão familiar.
         Foi um momento rápido, mas muito significativo, de liberdade para ela. Naquela situação, foi apenas profissional de saúde. Não trabalhava para nenhuma instituição específica, nem sequer conhecia os outros que estavam trabalhando com ela. Nenhum vínculo. Apenas seu compromisso com aquela pessoa, aquele bebê que precisava de ajuda.

            Infelizmente, a criança não resistiu e faleceu. E quando ninguém mais acreditava ser possível, ainda que de maneira trágica, Miguel conseguiu a sua tão esperada vaga.

"Será que eu falei o que ninguém ouvia?/ Será que eu escutei o que ninguém dizia?/ Eu não vou me adaptar, me adaptar (2x)" 
Não vou me adaptar, Nando Reis.


sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Anos Incríveis

               Era dia de missa. A menina de oito anos acordou cedo, venceu o medo e a vergonha de enfrentar uma igreja lotada de fiéis, e percorreu o corredor principal de acesso ao altar carregando a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Cumprida a missão confiada pela professora de catecismo, ela voltou para casa radiante, disposta a aproveitar bem o restante do dia.
          Em pouco tempo, os primos de todas as idades começaram a chegar. Cada um trazia consigo seu brinquedo novo, presente de dia das crianças. As tias juntaram-se à mãe da menina na cozinha, e entre conversas e gargalhadas, riscavam fósforos para iniciar o preparo do almoço que alimentaria um batalhão.
            Enquanto isso, meninos e meninas se dividiam alegremente, por idade e afinidades, em seus respectivos grupos do Bolinha e da Luluzinha, eufóricos em mais um encontro em família.
             Uma parte dos primos saiu correndo em disparada até alcançar o campo de futebol em frente à residência, enquanto outros tantos permaneciam entretidos lutando entre si, apostando corrida com as bicicletas, jogando bilas, futebol de botão e WAR.
             As primas, por outro lado, estavam todas engajadas na brincadeira com as Barbies. Cada uma empenhada em seu ofício. Duas delas arrumavam a casa de mentirinha, com mobílias de madeira compradas de artesãos nas calçadas do centro da cidade. Outras colhiam flores cor-de-rosa no jardim, caídas dos grandes pés de jambo, providenciando aquela que seria a comidinha das bonecas. As que restavam, por fim, cortavam e amarravam retalhos de tecido que dentro em pouco se transformariam em roupinhas exclusivas.
               O pai da menina, no quintal, escalava os altos coqueiros, garantindo água de coco bem docinha para todos, enquanto os tios aproveitavam o tempo livre para lavar seus automóveis estacionados na rua.
               Ao meio dia, depois do trabalho árduo em reunir as crianças, o almoço acontecia. A mesa da sala de jantar, embora grande, era suficiente para abrigar apenas os adultos. Para as crianças, era reservado todo o espaço da área lateral da casa. Cientes disso, cada uma delas recebia o seu prato já pronto e seguia para lá. Uma das tias enchia todos os copos com refrigerante, um item com o consumo permitido apenas naquele dia da semana.
            Os pratos vazios, mas com suas bordas ornamentadas por verdurinhas catadas minuciosamente pelas crianças durante a refeição, formavam enorme pilha na pia, ocupando as tias mais uma vez por um bom tempo na cozinha.
             A televisão transmitia a última volta da corrida de Fórmula 1. Logo ecoaram gritos alvoroçados, inclusive provenientes de outras residências, por mais uma vitória brasileira. Aquela alegria toda contagiava também os pequenos, que curiosos, uniam-se aos adultos para ver aquela bandeira tremulando na mão do piloto e assistir ao famoso banho de champanhe no pódio.
           A sobremesa era deixada sobre a mesa. Caixas de chocolate abertas, bem recheadas, até sua capacidade máxima, com bombons grandes, que preenchiam toda a boca. E nenhum daqueles inocentes imaginava ali que seriam diferentes disso um dia…
                Uma vez resolvidas as disputas acirradas pelos bombons de maior interesse, as brincadeiras reiniciavam. Naquele momento do dia, no entanto, a área lateral estava repleta de redes coloridas onde os adultos descansavam, e o sol escaldante impossibilitava também pensar em aventuras na rua. Assim, sobravam apenas a parte interna da casa, o jardim e o quintal.
                 Na calçada que rodeava a casa, logo surgiu uma amarelinha desenhada a giz. E a areia foi palco para jogos como “carimba”, “bandeira” e “sete pecados”. Dentro de casa, além do famoso esconde-esconde, as meninas mais calminhas recortavam roupas para bonecas de papel, bem como trocavam figurinhas e papéis de carta entre si. Na escrivaninha do quarto, uma dupla de crianças tentava resolver junto os passatempos do Almanaque de Férias da turma da Mônica.
                A esta altura, a criançada já estava suada, encardida e faminta novamente. Era a hora de formar a fila para o banho, que era sempre seguido do lanche, formado pela combinação mais saborosa desse mundo: café com pão!
               Aquele pão bengala enorme desaparecia em fração de segundos mergulhando no café de cada um. Café que oferecia como último atrativo, as bolinhas deliciosas de leite em pó depositadas no fundo das xícaras. Definitivamente não era época de intolerâncias à lactose ou proteínas do leite, tampouco existiam preocupações exageradas com as dietas.
                Uma vez arrumadinhas, as crianças se dirigiram para uma festa de aniversário na casa de um vizinho. Lá, a mesa estava linda, com um bolo ao centro, confeitado com bastante glacê, ladeado por duas torres de beijinhos enrolados em papéis de franjinhas.
              Após cantar os parabéns, as crianças receberam sacolinhas com línguas de sogra, anéis e pulseiras coloridas, bonecas e carrinhos que se desmembravam em mil pedaços, e um ioiô que teimava em dividir-se ao meio, dando trabalho para enrolar novamente todo o barbante.
            Dentre as guloseimas, pipoca de isopor, chicletes Ploc, Buballo, Batom, balas 7 Belo, caramelos, e o queridinho pirulito do Zorro.
              Ao final da festinha, todos foram se despedir do aniversariante, que em seu quarto, tirava uma foto clássica ao lado de todos os seus presentes, dispostos em cima da cama.
            Já em casa, sem os primos, a menina terminou seu dia assistindo ao programa humorístico de quatro homens palhaços, que dramatizavam de forma caricata a música Teresinha, de Chico Buarque de Holanda, um cantor que ela apreciaria muito com o passar do tempo. Sorridente e cansada, ela adormeceu feliz.
                Anos incríveis aqueles, sem dúvida...

“Super fantasticamente as músicas são asas da imaginação. É como a flor e a semente, cantar que faz a gente viver a emoção...”


Superfantástico, Turma do Balão Mágico

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Sinal vermelho! Parou!

                                                                                              
              O grande cruzamento perto de casa oferece logo a primeira linda imagem do dia. É possível visualizar pela janela do carro um senhor idoso que atravessa a rua segurando com esforço um regador, até alcançar as plantas recém-colocadas no canteiro principal da avenida. Ao contemplar essa cena, ela pensa que um dia poderá aproveitar a sombra daquela árvore que hoje de inicia, e lembrar-se da figura anônima que colaborou para que ela desfrutasse daquele bem.
       Mais à frente, passam vários ciclistas percorrendo uma das ciclovias que se multiplicaram recentemente na cidade. Ela critica em pensamento a descontinuidade das mesmas e lamenta que as pessoas sejam tão impulsionadas por modismos, ainda que andar de bicicleta, em especial, seja salutar.
          O caminho segue, e desta vez ela vê um homem de óculos escuros, vestido de branco, com uma maleta na mão, parado em frente aos portões ainda fechados de um Centro Espírita. Esse episódio se repete todos os dias, no mesmo horário, no percurso de ida ao trabalho, o que lhe causa bastante estranheza. Ela se demora olhando aquele vulto como se quisesse confirmar que não está diante de um evento sobrenatural, e sem chegar à conclusão alguma, prossegue.
       Ao alcançar a BR, longe de perder sua serenidade característica com o engarrafamento à sua frente, ela liga o som para debelar qualquer resquício de sono que teime em ir embora. A trilha musical que escolhe neste momento tem grande influência no seu humor e praticamente dita o ritmo de todo o seu dia.
             Indignada com a conduta reprovável de motoristas que ultrapassam sem parar pelo acostamento, e na ausência de algo mais belo para apreciar, ela inicia seu ritual de beleza, e garante a primeira parte da maquiagem, que só estará completa no seu local de trabalho. 
            E assim, cantarolando e olhando de tempos em tempos as notificações do aplicativo de conversas do aparelho celular, ela segue pelo mesmo caminho há oito anos, e apesar disso, considera que ele nunca permanece igual. Novas construções, reformas, e até novos grafites nos muros de uma universidade modificam paulatinamente o quadro original. Além disso, os personagens do caminho também vão mudando... A moça que vendia jornais em um cruzamento deixou o ponto, e a flanelinha de outro sinal mais à frente também desapareceu. São insignificantes diferenças que quebram a rotina e a tornam mais amena e suportável...
        Ao final do dia, no percurso de volta para casa, ela chega a um ponto crucial. Se seguir em frente, vai comtemplar o som doce de um jovem saxofonista, que promove seu lindo espetáculo por alguns trocados. Se virar à esquerda, no entanto, encontrará uma senhora com uma touca de crochê na cabeça, vendendo terços para arrecadar doações para sua igreja, disputando lugar com um rapaz alto, vestido de cozinheiro, com seu toque blanche impecável, distribuindo de maneira irreverente os panfletos de sua nova pizzaria.
          Estas serão as últimas paradas até seu destino final, onde será recebida por abraços apertados, daqueles bem saudosos, das filhas pequenas, e encontrará todo o aconchego que precisa para se refazer e enfrentar as novidades que aparecerão no outro dia...

“Eu ando pelo mundo/ E os automóveis correm para quê?/ As crianças correm para onde?/Transito entre dois lados de um lado/Eu gosto de opostos/ Exponho o meu modo, me mostro/Eu canto pra quem?”

                                          Adriana Calcanhoto, em Esquadros.