Não sabia precisar quando exatamente deparou-se
pela primeira vez com a figura daquele homem franzino, de olhar triste, que
assumia a posição de cócoras, e portava sempre consigo uma mochila surrada e
suja. Tratava-se de um paciente em situação de rua, que vivia embaixo de um
viaduto, e que procurou a unidade de saúde com quadro respiratório sugestivo de
tuberculose.
Como enfermeira, mais uma vez, sentiu-se
chamada ao combate ao bacilo de Koch, o mesmo que há alguns anos roubou-lhe o
colo do avô materno, e resolveu enfrentar o desafio de acompanhar um paciente complexo,
que carregava o peso de sua invisibilidade legal e social.
Diante de um homem adoecido, sem
família, sem documentos, sem teto e sem dinheiro, ela precisou revisitar seus
próprios temores e conceitos para atendê-lo com dignidade, sem assumir uma mera
atitude de piedade e compaixão.
Nos encontros periódicos com o
paciente, ela desconstruía a imagem de que morar na rua era sinônimo de
drogadição, vagabundagem e/ou alta periculosidade, descortinando pouco a pouco
a história de vida que aquele homem compartilhava com ela. Era como enxergar,
como dizia o contista, o fio escondido sob as miçangas, ser capaz de ver o que
ocultava a beleza do colar...
Foi julgada e questionada várias
vezes, na unidade de saúde e fora dela, sobre o seu real interesse em ajudar alguém
naquela situação de pobreza e vulnerabilidade extremas, mas não pensou em desistir.
Por acaso não é o caos do avesso que sustenta a beleza do bordado?
E foi
assim, a cada conversa, que a enfermeira percebeu que rotular aquele homem como
incapaz de autogovernar-se, pautada no senso comum de que ele era iletrado e
sozinho no mundo, só agravava sua desvantagem social. E a vinculação entre eles
foi crescendo naturalmente, ficando a enfermeira responsável pela guarda de
todos os exames e receitas, a pedido do paciente, que, por sua vez, obedecia de
bom grado a todos os acordos firmados com ela.
Sensível à necessidade de ofertar
afeto, escuta e acolhimento, a enfermeira acionou as colegas do hospital
especializado, que ficava no outro extremo da cidade, e encaminhou o paciente
para lá. Ele abraçou sua oportunidade, conseguindo, já na primeira tentativa,
vencer a distância, encontrar o local corretamente, e voltar para a unidade, com
medicações, prescrição e relatório médico na mão, fazendo a seu modo, sua própria
contra referência. Conseguiu ainda, assumir a posição de pé, sem o desconforto
respiratório inicial que o fazia permanecer de cócoras. Ainda que
simbolicamente, reergueu-se!
De maneira surpreendente, mesmo em condições de vida tão adversas, era o único paciente a cumprir todo o tratamento prescrito de forma regular, resistindo ao preconceito e a rejeição social, contrariando com louvor o rótulo de incapaz...