A semana começou atípica, com um dia de
folga. Após cumprir suas obrigações de mãe, ela decidiu dedicar parte seu dia a
si mesma. O professor de música sugeriu que ela trocasse as tarraxas de seu
violão, e aquele seria seu primeiro compromisso do dia. Determinada, dirigiu
até o centro da cidade, em busca de uma rua repleta de lojas especializadas em
instrumentos e outros artigos musicais.
Entrou em sua loja favorita e logo foi
atendida. Já havia estado ali em outra ocasião, mas dessa vez foi um pouco
diferente... Com o passar das aulas de música, além das inúmeras perguntas
sobre todos os itens expostos que desconhecia, conseguiu travar uma pequena
conversa com o vendedor sem parecer inexperiente como antes.
Entediada com a espera do serviço de
reparo e regulagem, deixou o violão aos cuidados do vendedor e saiu disposta a
explorar os outros estabelecimentos do lugar. Avistou entre os grandes
letreiros das lojas, quase imperceptível, uma placa pintada à mão, que
anunciava um luthier. Tomada por sua
curiosidade, resolveu atravessar a rua e ir até lá.
Subiu dois lances de uma escada estreita
e deparou-se com uma série de salas comerciais, dispostas lado a lado em um
longo corredor. O prédio era antigo e estava em precárias condições de limpeza
e conservação. Seguindo as indicações nas paredes, chegou até um cômodo escuro,
com um grande balcão na entrada. Encontrou um senhor, de aproximadamente
setenta anos, de cabelo e barba brancos, trabalhando atrás de uma mesa ampla, posicionada
em frente a uma janela, que garantia a iluminação necessária ao seu ofício.
Enfileirados pelo chão, violões, guitarras e baixos pareciam aguardar
pacientemente o momento em que estariam em suas mãos.
Sem
saber ao certo como agir, ela questionou sob os ajustes no violão. Estava cheia
de perguntas, mas não queria parecer inoportuna. E nem precisou. Ele parou o
que fazia e veio conversar com ela. Disse que precisava ver e sentir seu violão
para emitir algum parecer a respeito, mas pediu que ela falasse sobre ele,
questionando o que ela almejava com a música. Ouviu tudo atentamente, respondeu
todas as perguntas, e sorriu bastante com algumas delas.
A conversa foi interrompida por um homem
de meia idade, muito bem vestido, que veio receber uma linda guitarra. Ela
permaneceu ali, imóvel, observando o diálogo entre eles no balcão. O freguês,
muito apressado, recebeu o instrumento, agradeceu, pagou pelo reparo e saiu
rapidamente.
O luthier, vendo a cara de espanto da nova
amiga, começou a falar sobre o
cliente. Entendeu a surpresa estampada em seu rosto e disse: - Se quer mesmo saber, esse aí nunca tocou em
uma guitarra! Comprou várias, tão lindas e caras quanto a que acabou de sair
daqui, apenas para colecionar. Estão em sua casa, expostas nas paredes como
verdadeiros troféus, meros objetos decorativos, que não servem sequer para
encantar os ouvidos dos vaidosos que as contemplam...
Ao ouvir isso, ela começou um verdadeiro
interrogatório sobre a vida do luthier.
E ficou comovida com sua história... Ele revelou ter herdado a arte de dar vida
a instrumentos de corda de seu avô, um músico e boêmio inveterado. Relatou com
tristeza não ter encontrado um sucessor entre os filhos, e acrescentou que, com
o passar da idade, foi diminuindo seu ritmo de trabalho. Confessou que prometeu
parar por várias vezes, mas sempre que um cliente antigo o encontrava e encomendava
algo, ele cedia à solicitação e reiniciava. Diante disso, decidiu manter em
definitivo a sua oficina naquele ponto comercial, até onde fosse possível continuar
a exercer sua profissão.
Ela despediu-se e o deixou para trás, entristecida
por ver aquele talento todo tão desmerecido, escondido, ou melhor dizendo,
esquecido e abandonado naquele lugar inóspito. Já novamente de posse de seu
violão, ela teve ganas de voltar até lá, mas desistiu, considerando o pouco tempo
que havia sobrado para os demais compromissos do dia.
Em um café solitário, em outro ponto da cidade, ela não conseguia parar de pensar na
imagem daquele homem. Na forma despretensiosa com que recebeu uma iniciante
entusiasmada, esclarecendo suas dúvidas e confiando a ela a sua história de
vida. Concluiu que ele, na verdade, permanecia ali, acima de
tudo, por amor e fidelidade ao seu avô, à missão que assumiu de perpetuar os seus ensinamentos. Pensou em voltar até lá com mais
tempo, para manter novo contato com aquela simplicidade e honradez, próprias de
gente de bem.
Mais uma vez sentiu-se envergonhada por
viver entre pessoas que adoram a praticidade dos artigos descartáveis, que
desprezam a experiência de seus ancestrais como um produto ultrapassado, e que
vivem submissos, como súditos a espera de um novo decreto da rainha modernidade.
“E o artesão finalmente, nessa mulher de
madeira, botou o seu coração. E lhe apertou contra o peito, e deu-lhe um nome
bonito, e assim nasceu o violão.”
Violão,
Ana Carolina.
Que sensibilidade, amiga!
ResponderExcluirO Centro da cidade é cheio de história, você graciosamente encontrou mais uma. 😙
Belas histórias contadas pelas ruas de Fortaleza 😊! 👏🏼👏🏼
ResponderExcluirMuito sensível mesmo. Incrível como a vida cotidiana se torna uma personagem anônima em um texto tão gracioso. Pequenos detalhes que ao final se tornam grandiosos.
ResponderExcluirLindo demais. Parabéns.
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