terça-feira, 15 de novembro de 2016

O fabricante de alaúdes

        A semana começou atípica, com um dia de folga. Após cumprir suas obrigações de mãe, ela decidiu dedicar parte seu dia a si mesma. O professor de música sugeriu que ela trocasse as tarraxas de seu violão, e aquele seria seu primeiro compromisso do dia. Determinada, dirigiu até o centro da cidade, em busca de uma rua repleta de lojas especializadas em instrumentos e outros artigos musicais.
        Entrou em sua loja favorita e logo foi atendida. Já havia estado ali em outra ocasião, mas dessa vez foi um pouco diferente... Com o passar das aulas de música, além das inúmeras perguntas sobre todos os itens expostos que desconhecia, conseguiu travar uma pequena conversa com o vendedor sem parecer inexperiente como antes.
      Entediada com a espera do serviço de reparo e regulagem, deixou o violão aos cuidados do vendedor e saiu disposta a explorar os outros estabelecimentos do lugar. Avistou entre os grandes letreiros das lojas, quase imperceptível, uma placa pintada à mão, que anunciava um luthier. Tomada por sua curiosidade, resolveu atravessar a rua e ir até lá.
      Subiu dois lances de uma escada estreita e deparou-se com uma série de salas comerciais, dispostas lado a lado em um longo corredor. O prédio era antigo e estava em precárias condições de limpeza e conservação. Seguindo as indicações nas paredes, chegou até um cômodo escuro, com um grande balcão na entrada. Encontrou um senhor, de aproximadamente setenta anos, de cabelo e barba brancos, trabalhando atrás de uma mesa ampla, posicionada em frente a uma janela, que garantia a iluminação necessária ao seu ofício. Enfileirados pelo chão, violões, guitarras e baixos pareciam aguardar pacientemente o momento em que estariam em suas mãos.
        Sem saber ao certo como agir, ela questionou sob os ajustes no violão. Estava cheia de perguntas, mas não queria parecer inoportuna. E nem precisou. Ele parou o que fazia e veio conversar com ela. Disse que precisava ver e sentir seu violão para emitir algum parecer a respeito, mas pediu que ela falasse sobre ele, questionando o que ela almejava com a música. Ouviu tudo atentamente, respondeu todas as perguntas, e sorriu bastante com algumas delas.     
        A conversa foi interrompida por um homem de meia idade, muito bem vestido, que veio receber uma linda guitarra. Ela permaneceu ali, imóvel, observando o diálogo entre eles no balcão. O freguês, muito apressado, recebeu o instrumento, agradeceu, pagou pelo reparo e saiu rapidamente.
       O luthier, vendo a cara de espanto da nova amiga, começou a falar sobre o cliente. Entendeu a surpresa estampada em seu rosto e disse:  - Se quer mesmo saber, esse aí nunca tocou em uma guitarra! Comprou várias, tão lindas e caras quanto a que acabou de sair daqui, apenas para colecionar. Estão em sua casa, expostas nas paredes como verdadeiros troféus, meros objetos decorativos, que não servem sequer para encantar os ouvidos dos vaidosos que as contemplam...
       Ao ouvir isso, ela começou um verdadeiro interrogatório sobre a vida do luthier. E ficou comovida com sua história... Ele revelou ter herdado a arte de dar vida a instrumentos de corda de seu avô, um músico e boêmio inveterado. Relatou com tristeza não ter encontrado um sucessor entre os filhos, e acrescentou que, com o passar da idade, foi diminuindo seu ritmo de trabalho. Confessou que prometeu parar por várias vezes, mas sempre que um cliente antigo o encontrava e encomendava algo, ele cedia à solicitação e reiniciava. Diante disso, decidiu manter em definitivo a sua oficina naquele ponto comercial, até onde fosse possível continuar a exercer sua profissão.
    Ela despediu-se e o deixou para trás, entristecida por ver aquele talento todo tão desmerecido, escondido, ou melhor dizendo, esquecido e abandonado naquele lugar inóspito. Já novamente de posse de seu violão, ela teve ganas de voltar até lá, mas desistiu, considerando o pouco tempo que havia sobrado para os demais compromissos do dia.
      Em um café solitário, em outro ponto da cidade, ela não conseguia parar de pensar na imagem daquele homem. Na forma despretensiosa com que recebeu uma iniciante entusiasmada, esclarecendo suas dúvidas e confiando a ela a sua história de vida. Concluiu que ele, na verdade, permanecia ali, acima de tudo, por amor e fidelidade ao seu avô, à missão que assumiu de perpetuar os seus ensinamentos. Pensou em voltar até lá com mais tempo, para manter novo contato com aquela simplicidade e honradez, próprias de gente de bem.
     Mais uma vez sentiu-se envergonhada por viver entre pessoas que adoram a praticidade dos artigos descartáveis, que desprezam a experiência de seus ancestrais como um produto ultrapassado, e que vivem submissos, como súditos a espera de um novo decreto da rainha modernidade.

“E o artesão finalmente, nessa mulher de madeira, botou o seu coração. E lhe apertou contra o peito, e deu-lhe um nome bonito, e assim nasceu o violão.”

Violão, Ana Carolina.

4 comentários:

  1. Que sensibilidade, amiga!
    O Centro da cidade é cheio de história, você graciosamente encontrou mais uma. 😙

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  2. Belas histórias contadas pelas ruas de Fortaleza 😊! 👏🏼👏🏼

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  3. Muito sensível mesmo. Incrível como a vida cotidiana se torna uma personagem anônima em um texto tão gracioso. Pequenos detalhes que ao final se tornam grandiosos.

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