sábado, 5 de novembro de 2016

Sufrágio Universal

         Era dia de eleição. A menina e seu pai haviam chegado de viagem no dia anterior. O comércio completamente fechado dava ares de abandono à cidade.
         Disputavam uma vaga à prefeitura, os herdeiros de duas das famílias mais influentes do lugar, que há vários anos revezavam-se no poder.
         Os ânimos estavam bastante exaltados. A morte de um dos candidatos a vice-prefeito na semana anterior, em um acidente na estrada, justificava o clima de tensão entre os munícipes.
         A tia da menina já estava à espera dos eleitores na escola de ensino fundamental, onde eram lotadas a maioria das sessões eleitorais. As urnas de lona, apoiadas em cadeiras de mogno, foram posicionadas ao centro das salas, e as cabinas cartonadas dispostas ao canto, aguardando o início do pleito.
        A menina acompanhava o pai, no comecinho de uma das filas. Nos corredores, todos preparados, com seus melhores trajes e título de eleitor em punho. Tudo transcorria bem. O pai rapidamente recebeu uma cédula, e com a ajuda da filha, concluiu seu voto.
       Os dois dirigiram-se então para o centro da cidade. O pai foi visitar a casa de um de seus conterrâneos. Muitos conhecidos começaram a se aglomerar no alpendre da casa para desfrutar de sua companhia e ouvir seus causos. Aquela alegria contagiante com que era recebido pelos amigos era o principal motivo para manter seu domicílio eleitoral no interior, apesar de morar na capital do Estado.
        Em silêncio, sentadinha na calçada, a menina ouvia os adultos conversando a respeito dos candidatos e suas propostas, indo e voltando em diversos assuntos, como se acompanhassem o balançar de suas cadeiras de fibras sintéticas coloridas.
       As conversas que ela testemunhava, apesar de calorosas, não eram agressivas ou desrespeitosas, uma vez que a amizade entre eles era maior que qualquer oposição política.
     A expectativa pelo resultado crescia ao longo do dia. Os dois comitês estavam preparados para proporcionar grandes festas em caso de vitória de seus respectivos candidatos. Naquela época as proibições não eram tão rigorosas, e os eleitores exibiam tranquilamente pelas ruas suas preferências estampadas em bonés, camisetas, chaveiros, bottons etc. E não houve registro de qualquer tipo de tumulto entre os grupos adversários.
       Ao final do dia, a tia foi encontrar a menina e a conduziu pela mão até o enorme ginásio do clube de lazer, onde acontecia a apuração. Ela levava café e bolo quentinhos para alimentar os voluntários que permaneceriam ali durante a madrugada no intenso trabalho de contagem dos votos.
       A menina não compreendia bem a importância de tudo o que acontecia ali, mas olhando ao redor todas aquelas mesas, a quantidade de pessoas envolvidas, e as pilhas de papel que se avolumavam a cada urna que era aberta e tinha seu conteúdo despejado, ela aprendeu a valorizar todo aquele processo.
      Na cidade, as praças estavam insones. Crianças brincando, casais namorando, pessoas transitando como sob a luz do sol, embora a lua já estivesse alta. Todos queriam estar próximos para ouvir em primeira mão o anúncio do vencedor através da radiadora.
        E as urnas não decepcionaram. Apenas confirmaram o sucesso do favorito. E logo houve grande estrondo de fogos de artifício e alegria pelas ruas como no derradeiro dia do ano...

      “Os meus heróis morreram de overdose. Meus inimigos estão no poder. Ideologia, eu quero uma pra viver...”

Ideologia, Cazuza.

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