quarta-feira, 12 de junho de 2019

Sobre cartas e presentes...



             Maria era uma exímia bordadeira. Fazia enxovais completos para recém-nascidos à mão. Francisco trabalhava viajando, percorrendo vários municípios a serviço da Secretaria de Agricultura do seu Estado de origem. Certo dia, Maria foi acompanhar seu irmão padre em uma cidadezinha do interior, para ajudar na Casa Paroquial, e o encontro aconteceu…
            O rapaz estava de casamento marcado com uma moça muito conhecida na cidade por seu grande talento para a culinária, e em especial, para doces. Ele precisou ir até a igreja para acertar detalhes do casório, e avistou Maria, sentada em sua máquina de costura, preparando coisas lindas para mais um bebê que estava prestes a chegar. Aquela figura doce e serena o encantou de tal forma, que decidiu protelar o casamento. E as visitas à igreja se tornaram cada vez mais frequentes quando ele estava no lugar.
              O tempo foi passando, os dois se aproximaram, e Francisco decidiu desfazer seu noivado. Apaixonados, eles passaram a corresponder-se por cartas. Foi a maneira que encontraram para esconder o que sentiam aos olhos de toda a cidade, que ficou estarrecida com o fim do noivado, uma vez que os noivos já haviam comprado casa e mobiliado tudo, mas Francisco não voltou atrás.
           Sem coragem para revelar o que sentiam, o namoro seguiu por correspondência e com alguns encontros fortuitos quando ele estava no lugar. O tempo passou um pouco mais e o rapaz estava decidido a assumir o namoro publicamente, quando o pai de Maria faleceu. As coisas pioraram para ele, pois o irmão padre era agora o responsável pela família toda, formada pela mãe e oito irmãos. Muito astuto, Francisco soube do desejo do padre em reformar a paróquia, e para aproximar-se dele, sugeriu ao sacerdote que escrevesse cartas a todos os fiéis mais abastados do lugar solicitando doações. E assim o pároco fez. Em pouco tempo, a paróquia estava nova e ampliada. E Francisco ganhou a afeição do padre.
            Logo os dois conseguiram ficar juntos. Casaram após doze anos de namoro e tiveram apenas uma filha. Francisco vendeu tudo o que havia comprado para o casamento que nunca aconteceu, mas preservou um presente: o fogão! A filha presenciou brigas terríveis entre os pais por causa deste item, mas era pequena demais pra entender sobre o ciúme de uma mulher. Maria parou de bordar e virou dona de casa. Desde então, só se arriscava em enfeitar peças de pano para casa e vestidos para a menina. Como mãe, sempre atarefada com a rotina doméstica, sem perceber, deixava a filha por muito tempo aos cuidados do pai.
           Francisco apropriou-se da menina como se ela fosse o tesouro mais precioso que havia conquistado na vida. Viveram muitas coisas juntos. Ele realizou todos os seus sonhos, mimou o quanto podia, e ensinou muito sobre generosidade e gratidão. E todas as vezes que ela chorou, ele ofereceu o seu abraço mais afetuoso.
            Um dia, ele levou a menina para andar de bicicleta, e na pracinha, a pequena questionou sobre o fogão. Pediu para o pai desfazer-se daquilo, tomada pela raiva da mãe. E ele explicou que o fogão foi o presente mais especial de todos daquela casa que nunca existiu. Escolheu o melhor eletrodoméstico porque esperava que a doceira fizesse ainda mais sucesso na cidade, e também porque ela passaria a maior parte do tempo lá, cozinhando, e isso o tornaria especial. Foi a partir de então que a menina passou a prestar mais atenção nessa história de dar e receber presentes…
            A menina tornou-se enfermeira, casou-se e perdeu a avó e o pai em anos seguidos. A morte de Francisco a destruiu por dentro, e ela ainda precisava manter-se forte para amparar a mãe. Afinal, não tinha irmãos para dividir nada… Nos primeiros dias, achou que Maria fosse ficar deprimida, e dedicou mais atenção a ela. Um dia, após um choro compulsivo de quase dez minutos, a mãe, sufocada de dor, disse para a filha que lamentava não ter guardado nenhuma das cartas de amor do tempo de namoro. E aquela menina de antigamente foi com ela, resgatar lembranças e ajudar a superar todo aquele luto.
         Maria pegou uma frasqueira, que foi presente dele, e disse que tudo o que restava era um cartão e uma caixinha que veio dentro dela. A filha pediu que explicasse aquele presente. Ela começou contando que durante o namoro, solicitou a Francisco que comprasse uma frasqueira para guardar as fitas, linhas e apetrechos para bordar, e em uma de suas viagens, ele comprou. Porém, como o namoro ainda não havia sido revelado, ele resolveu esconder, em um bolsinho da frasqueira, o cartão e uma caixinha com um terço de prata. A menina, a esta altura da vida, já toda entendida em presentes e histórias de amor, consolou a mãe dizendo que ela havia guardado o que foi mais significativo para ela. Na época, ela manuseava a frasqueira o dia todo para costurar, e assim, de alguma forma, ele estava lá… Além disso, ao final do dia, ela podia ler e reler o cartão, e ainda, tomar o terço nas mãos e pedir a Deus proteção para ele em tantas viagens. Maria sorriu, agradeceu a filha e disse que a melhor lembrança de Francisco era o presente que havia nascido no Natal para ela. No caso, a filha.
          E com todos esses exemplos, a menina foi compreendendo ainda mais sobre cartas e presentes...

“Naquela mesa tá faltando ele, e a saudade dele, tá doendo em mim...” Naquela Mesa, Nelson Gonçalves.

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