Era dia de missa. A menina de oito anos
acordou cedo, venceu o medo e a vergonha de enfrentar uma igreja lotada de
fiéis, e percorreu o corredor principal de acesso ao altar carregando a imagem
de Nossa Senhora Aparecida. Cumprida a missão confiada pela professora de
catecismo, ela voltou para casa radiante, disposta a aproveitar bem o restante
do dia.
Em
pouco tempo, os primos de todas as idades começaram a chegar. Cada um trazia
consigo seu brinquedo novo, presente de dia das crianças. As tias juntaram-se à
mãe da menina na cozinha, e entre conversas e gargalhadas, riscavam fósforos
para iniciar o preparo do almoço que alimentaria um batalhão.
Enquanto
isso, meninos e meninas se dividiam alegremente, por idade e afinidades, em
seus respectivos grupos do Bolinha e da Luluzinha, eufóricos em mais um
encontro em família.
Uma parte
dos primos saiu correndo em disparada até alcançar o campo de futebol em frente
à residência, enquanto outros tantos permaneciam entretidos lutando entre si,
apostando corrida com as bicicletas, jogando bilas, futebol de botão e WAR.
As
primas, por outro lado, estavam todas engajadas na brincadeira com as Barbies.
Cada uma empenhada em seu ofício. Duas delas arrumavam a casa de mentirinha,
com mobílias de madeira compradas de artesãos nas calçadas do centro da cidade.
Outras colhiam flores cor-de-rosa no jardim, caídas dos grandes pés de jambo,
providenciando aquela que seria a comidinha das bonecas. As que restavam, por
fim, cortavam e amarravam retalhos de tecido que dentro em pouco se
transformariam em roupinhas exclusivas.
O pai
da menina, no quintal, escalava os altos coqueiros, garantindo água de coco bem
docinha para todos, enquanto os tios aproveitavam o tempo livre para lavar seus
automóveis estacionados na rua.
Ao
meio dia, depois do trabalho árduo em reunir as crianças, o almoço acontecia. A
mesa da sala de jantar, embora grande, era suficiente para abrigar apenas os
adultos. Para as crianças, era reservado todo o espaço da área lateral da casa.
Cientes disso, cada uma delas recebia o seu prato já pronto e seguia para lá.
Uma das tias enchia todos os copos com refrigerante, um item com o consumo
permitido apenas naquele dia da semana.
Os
pratos vazios, mas com suas bordas ornamentadas por verdurinhas catadas minuciosamente
pelas crianças durante a refeição, formavam enorme pilha na pia, ocupando as
tias mais uma vez por um bom tempo na cozinha.
A televisão transmitia a última volta da
corrida de Fórmula 1. Logo ecoaram gritos alvoroçados, inclusive provenientes de
outras residências, por mais uma vitória brasileira. Aquela alegria toda
contagiava também os pequenos, que curiosos, uniam-se aos adultos para ver aquela
bandeira tremulando na mão do piloto e assistir ao famoso banho de champanhe no
pódio.
A
sobremesa era deixada sobre a mesa. Caixas de chocolate abertas, bem recheadas,
até sua capacidade máxima, com bombons grandes, que preenchiam toda a boca. E nenhum
daqueles inocentes imaginava ali que seriam diferentes disso um dia…
Uma vez resolvidas as disputas acirradas
pelos bombons de maior interesse, as brincadeiras reiniciavam. Naquele momento
do dia, no entanto, a área lateral estava repleta de redes coloridas onde os
adultos descansavam, e o sol escaldante impossibilitava também pensar em
aventuras na rua. Assim, sobravam apenas a parte interna da casa, o jardim e o quintal.
Na calçada que rodeava a casa, logo
surgiu uma amarelinha desenhada a giz. E a areia foi palco para jogos como
“carimba”, “bandeira” e “sete pecados”. Dentro de casa, além do famoso
esconde-esconde, as meninas mais calminhas recortavam roupas para bonecas de
papel, bem como trocavam figurinhas e papéis de carta entre si. Na escrivaninha
do quarto, uma dupla de crianças tentava resolver junto os passatempos do
Almanaque de Férias da turma da Mônica.
A esta
altura, a criançada já estava suada, encardida e faminta novamente. Era a hora
de formar a fila para o banho, que era sempre seguido do lanche, formado pela
combinação mais saborosa desse mundo: café com pão!
Aquele
pão bengala enorme desaparecia em fração de segundos mergulhando no café de
cada um. Café que oferecia como último atrativo, as bolinhas deliciosas de
leite em pó depositadas no fundo das xícaras. Definitivamente não era época de
intolerâncias à lactose ou proteínas do leite, tampouco existiam preocupações
exageradas com as dietas.
Uma
vez arrumadinhas, as crianças se dirigiram para uma festa de aniversário na
casa de um vizinho. Lá, a mesa estava linda, com um bolo ao centro, confeitado
com bastante glacê, ladeado por duas torres de beijinhos enrolados em papéis de
franjinhas.
Após
cantar os parabéns, as crianças receberam sacolinhas com línguas de sogra,
anéis e pulseiras coloridas, bonecas e carrinhos que se desmembravam em mil
pedaços, e um ioiô que teimava em dividir-se ao meio, dando trabalho para
enrolar novamente todo o barbante.
Dentre
as guloseimas, pipoca de isopor, chicletes Ploc, Buballo, Batom, balas 7 Belo,
caramelos, e o queridinho pirulito do Zorro.
Ao final
da festinha, todos foram se despedir do aniversariante, que em seu quarto,
tirava uma foto clássica ao lado de todos os seus presentes, dispostos em cima da
cama.
Já em casa,
sem os primos, a menina terminou seu dia assistindo ao programa humorístico de
quatro homens palhaços, que dramatizavam de forma caricata a música Teresinha, de Chico Buarque de Holanda, um
cantor que ela apreciaria muito com o passar do tempo. Sorridente e cansada,
ela adormeceu feliz.
Anos
incríveis aqueles, sem dúvida...
“Super fantasticamente
as músicas são asas da imaginação. É como a flor e a semente, cantar que faz a
gente viver a emoção...”
Superfantástico, Turma do Balão Mágico
'E nenhum daqueles inocentes imaginava ali que seriam diferentes disso um dia…' Fantástico! Lembrou-me Rachel de Queiroz!
ResponderExcluirOh, meu amigo...Você como sempre muito generoso.
ExcluirQue delícia de lembranças. Remete a infância de qualquer um de nossa geração, já que era tudo tão parecido. Fez-me lembrar que a simplicidade era a alegria, tão diferentemente dos dias de hoje, em que parecemos precisar de tanto. Lindo texto. Linda estréia. Parabéns pelo blog.
ResponderExcluirAmiga, a sua opinião pra mim tem um valor muito especial. Fiquei super feliz com seu comentário. Bjo
ExcluirEu adoro a escrita com sujeitos ocultos.... que sabemos quem sao mas nao precisa dizer o nome. A passagem "do piloto que vencia de novo e carregava a bandeira para o tradicional banho de champanhe" me trouxe memorias espetaculares...
ResponderExcluirÉ muito especial pra mim saber que a minha história lhe trouxe boas recordações. Fico muito feliz mesmo.
ExcluirFalou de mim,assim como de cada um que viveu estes incríveis anos '80/'90. Reuniu todas as sensações de nossa infância!
ResponderExcluirMinha infância, a sua, a nossa. Tempos felizes...
ResponderExcluirEu achava que só eu tinha essa nostalgia. ....adorei o texto, Saudade dessa época
ResponderExcluirUma crítica aos dias atuais e uma saudade dos tempos de outrora.Isso que sinto ao ler esse texto. As crianças de hoje nunca saberão a alegria que foi a nossa época! Parabéns pela delicadeza nas lembranças e obrigada por me fazer voltar novamente aos 7 anos de idade.
ResponderExcluirQue comentário adorável, minha amiga...Sem palavras para agradecer seu carinho. Beijão
ExcluirAdorei tudo! Texto que nos remete à infância, recordações afetivas, momentos vividos e experiências familiares que por algum motivo perdeu-se no tempo. Parabéns
ResponderExcluirTaaaaaati, que bom te encontrar por aqui. Bom demais ter esse retorno de uma pessoa tão querida como você. Bjo
ExcluirQue saudade dos almoços na casa da vovó 😍! Me deu ate uma nostalgia aqui...
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