Miguel era um lindo bebê, daqueles de olhos
claros, de uma cor que você jamais cansa de olhar. Daqueles que choram fazendo
beicinho e você “perde tempo” consolando. Mal chegou, e rapidamente tornou-se o
xodó do berçário. Seria até hipocrisia dizer que não existia um atendimento VIP
para ele...
A acompanhante era uma mãe muito consciente,
colaborativa, daquelas dispostas a tudo pelo filho. Adolescente, bem novinha
mesmo, mas segura do seu papel, do tipo “nasceu pra ser mãe”.
Quando a enfermeira examinou direitinho o bebê, encontrou uma má-formação em sua mão direita. Constatou com
alívio que a mão esquerda era perfeita, o que facilitaria sua adaptação à deficiência quando crescesse.
Após alguns dias de
internação por pneumonia, o quadro clínico do bebê começou a se agravar. Miguel também era portador de uma cardiopatia congênita complexa, o que em poucos dias colocou seu
nome na maldita lista de espera da central de leitos por uma vaga em UTI neonatal.
E toda a equipe de Enfermagem ficou mobilizada, ligando o tempo todo,
insistindo muito mesmo com o pessoal da regulação para conseguir a tal vaga. E
ele esperando, resistindo... O coração da enfermeira, a esta altura, estava
mais doente que o dele, achando que ia perdê-lo a cada urgência, a cada
episódio de cianose intensa. E ele ali, cheio de vontade de permanecer vivo,
brigando com a saturação que insistia em cair.
Um dia, a enfermeira chamou
a assistente social ao berçário e pediu que avisasse a mãe de Miguel para
trazer quem quisesse vê-lo no horário de visita. Ela, que sempre vinha só, veio
acompanhada do pai do menino. Era um homem bem mais velho, motorista de ônibus.
Vendo o estado de seu filho, ele ligou para a firma, pedindo dinheiro ao chefe para
pagar uma internação na UTI de uma instituição particular. E foi só
decepção...
A tranquilidade daqueles pais surpreendia. O bebê gravíssimo, e eles de mãos dadas, em silêncio, sem trocar nenhuma
palavra, ao lado do leito. Enquanto isso, a equipe de Enfermagem sempre
atarefada, trabalhava duro durante todo o plantão, obstinada em cumprir a rotina de cuidados diária a contento. Porém, não estava alheia aquele sofrimento, uma vez que era o berço no canto
da unidade o mais visitado por todos.
Com o decorrer dos dias, a enfermeira estava indignada
com a demora da central de leitos, que sempre lhe parecia tratar com descaso ou indiferença uma situação tão urgente e delicada. Diante disso, em um momento de maior
revolta, ela decidiu assumir a remoção e transferir a criança sem garantia alguma
de vaga, desafiando a pessoa da regulação que sugeriu isso por telefone.
Reuniu o material que julgava
necessário, e não faltou quem a ajudasse. A médica de plantão naquele dia, no entanto,
relutou bastante em remover a criança com ela, alegando o risco de óbito
durante o transporte, e o fato de que poderiam nem ser recebidas, voltando com o
bebê para o hospital onde estavam. Porém, ficou acuada frente à equipe, pois de
alguma forma foi colocada à prova, desafiada pela enfermeira. E, por fim, terminou
concordando com o feito. Saíram as duas, com a técnica de Enfermagem e a mãe, que
estava ciente de tudo e foi estimulada pela torcida das outras mães acompanhantes
pelo seu filho.
No grande hospital de
referência pediátrica, a recepção não podia ser pior. De imediato, foram barradas na porta
da sala de reanimação. Uma UTI disfarçada, onde crianças de todas as idades
dividiam um espaço mínimo. De berços aquecidos a berços grandes. Olhando em
volta, era possível lembrar aquelas imagens jornalísticas de abrigos de
sobreviventes de alguma tragédia. E realmente estavam todos desabrigados. A
plantonista exaltada, afirmou que a única vaga disponível era na pia da unidade.
Ainda assim, insultadas, continuaram todas lá, discutindo o que fazer, sem ideia do que estava prestes a acontecer...
De repente, uma técnica de Enfermagem chama
aos gritos. Avisa que há um bebê em parada respiratória. Logo todas correm e
as duas equipes se misturam. Nessa hora, elas já nem existiam mais. Todas as
profissionais estavam juntas em harmonia, a despeito das agressões trocadas há bem
pouco tempo. A enfermeira visitante conseguiu auxiliar no socorro ao bebê sem
grande dificuldade, encontrando tudo surpreendentemente no carrinho de urgência
estranho, quando não achava nada direito no carrinho de seu próprio ambiente de
trabalho, tão familiar.
Foi um momento rápido, mas muito
significativo, de liberdade para ela. Naquela situação, foi apenas profissional
de saúde. Não trabalhava para nenhuma instituição específica, nem sequer
conhecia os outros que estavam trabalhando com ela. Nenhum vínculo. Apenas seu
compromisso com aquela pessoa, aquele bebê que precisava de ajuda.
Infelizmente, a criança não resistiu
e faleceu. E quando ninguém mais acreditava ser possível, ainda que de maneira
trágica, Miguel conseguiu a sua tão esperada vaga.
"Será que eu falei o que ninguém ouvia?/ Será que eu escutei o que ninguém dizia?/ Eu não vou me adaptar, me adaptar (2x)"
Não vou me adaptar, Nando Reis.
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